Um conto rápido de shadowrun

Mais uma noite no paraíso

O armazém tinha a aparência de velho e abandonado. Só deus sabe porque estava assim. Os tijolos vermelhos, castigados pela ação do tempo davam uma dica quando tinha sido construído.  Ficava a poucos quilômetros de importantes rodovias e a menos de dez minutos do aeroporto. Aliás, quando os grandes aviões de carga passavam por ele as janelas que não estavam bem chumbadas vibravam e algumas lâmpadas penduradas tremiam.

Julius parou o carro dentro da cerca de arame farpado, procurando um lugar discreto entre os postes de luz que restavam no pátio. Estacionou ao lado de uma lixeira-contâiner de modo que quem passasse pela rua não veria o seu caro. O seu dallek vermelho era um semi-esportivo urbano de motor híbrido. Era um carro razoavelmente rápido e eficiente e não estava na lista dos mais roubados. Mas cuidado nunca era demais.

Jullius era o que podia ser chamado de especialista de segurança freelance. Seu trabalho era, até dois anos arás, testar sistemas de segurança. Se conseguissem pegá-lo invadindo o sistema do lugar, o sistema era aprovado. Era considerado OK. Teve uma carreira sólida até que durante uma de suas incursões a empresa tinha sido invadida de verdade. Uma vez que os funcionários estavam com munição não letal e os invasores estavam com munição letal foi um verdadeiro banho de sangue. O julgamento foi rápido e Julius pode provar sua inocência, mas seu nome estava marcado como “não confiável”. No seu ramo de atuação era o mesmo que uma sentença de morte.

Ele perambulou por alguns bicos até que um dos seus contatos o enviou para empregos “abaixo da linha do radar”. Isso tem um ano. Aquela deveria ser sua sexta missão freelance. Como sempre não tinha muitos detalhes do que ia fazer ou com quem ia trabalhar. O segredo faz parte do negócio. Mas tinham pedido especialmente por ele e não por um especialista em segurança. Ficava divagando quem dos seus antigos empregadores – todos satisfeitos diga-se de passagem – poderia tê-lo indicado.

Antes de descer Julius verificou o equipamento. Uma pistola 10mm carregada com munição explosiva, dois pentes extras de munição, uma granada de fumaça e duas granadas de combate (cortesia do exército). O colete por baixo da camisa lhe daria uma vantagem extra, se ele precisasse usar. Os cabelos negros, curtos e penteados de forma tradicional ajudavam a passar a imagem de profissionalismo. Ele colocou os óculos escuros que lhe garantiam visão noturna e um cyberlink com sua pistola e foi indo em direção a entrada lateral do prédio. Era apenas mais um contrato de trabalho, mas não custava ter cuidado. Ele aproximou seu id-card da porta e a ouviu destrancar. O sistema de segurança do lugar era bom. Bem demais para um prédio que parecia abandonado. As paredes tinham reforço balístico e abafadores. Deveria ter geradores de ruído branco por toda parte. As portas pareciam de madeira compensada, mas isso era apenas casca. Portas blindadas de 6mm de espessura. Seja lá quem for o dono do lugar gostava de privacidade.

Ele seguiu até uma área central onde centenas de máquinas de costura jaziam cobertas com plástico uma do lado da outra. O lugar deveria ser ou ter sido uma confecção clandestina. Centenas de trabalhadores ilegais devem ter derramado muito suor naquele lugar, em turnos de mais de dezoito horas de trabalho. Ele passou pelas máquinas virando a direita para uma placa que dizia escritório do gerente. Ele entrou sem bater.

– Parece que nosso último convidado chegou. Como senhor chegou atrasado vai ter qe ficar com o codinome que sobrou. Nesta missão nos tratamos apenas por codinomes. Quanto menos cada um de nós souber… – “Menos cada um de nós pode dedurar os outros” pensou Julius pensando que tipo de codinome idiota tinha sobrado para ele. Ele olhou demoradamente para o que parecia ser o seu contratador. Era um ork de meia idade, usando calça jeans e sapatos de imitação de couro. Usava uma camiseta preta e por cima dela uma camisa de flanela vermelha. – Bem, o senhor vai ficar com Yellow-5. Deixe-me apresentar seus colegas de equipe.

Ele foi apontado para cada um deles. Primeiro um humano de feições orientais cheio de implantes cibernéticos. Deveria ser um samurai urbano. Combatente de primeira. Red-1. O segundo foi uma menina elfa (ou seria menino? elfos são todos assim meio andróginos). Tinha olhos espelhados e deveria ser uma decker de mão cheia a julgar pelo bracelete high-tech que tinha num dos braços. Blue-2. O terceiro era um mago urbano, sem dúvida. Trazia uma bengala de aço escovado com uma cabeça de dragão estilizada na ponta. Sua pele negra e as cicatrizes de queimadura apenas afirmava o óbvio: o cara aprendeu magia pelo meio mais difícil. Black-3. Não deixava de ser irônico. O quarto deles era um ork, calvo e com a aparência de drogado. Suas mãos tremiam de leve. Ele deveria ter tantos chips de ampliação de reflexos que provavelmente seria capaz de pegar uma bala de magnun com os dentes. Green-4.

– Agora de volta ao plano…

Julius, ou melhor, Yellow-4 olhou para a tela de projeção onde mapas e fotos eram mostradas. Seria uma missão das boas.

Era bom demais para ser verdade.

Quando a esmola é demais o santo desconfia, já dizia o adágio popular que tantas vezes ouvira na juventude. A missão até agora tinha sido uma uva. Todos os colegas eram profissionais de alto nível. Especialistas em suas zonas de atuação. A missão era simples: seguir até um laboratório mais ou menos secreto no meio de uma floresta e trazer de lá um cientista chamado Dr. Fuentes. O cara trabalhava com um novo tipo de lente de contato holográfica. Moda cyber. O tipo da coisa que nem dá assim tanto dinheiro, mas que gera muita renda para quem sabe aproveitar.

O empregador não tinha economizado no budget: o piloto era dos melhores. Já tinha ouvido falar nele. Um texano chamado Wild Bill McCloud. Eles foram até um aeroclube, pegaram um VDV (Veículo de decolagem vertical) chamado comumente de Vert-bird pintado com as cores da empresa e foram até o ponto de extração.

Tudo corria bem. A autorização foi concedida via rádio com os códigos comprados daquele ex-funcionário da empresa. Estavam todos vestidos com uniforme da equipe de segurança. Deveria ser apenas uma visita de rotina. Todo mundo descia. O elfo deveria tomar conta do sistema de dados deles para facilitar a nossa entrada e saída do lugar, enquanto Yellow-4 buscava o doutor, garantindo que ele se vestisse como um funcionário da segurança.

O elfo invadiu os sistemas e o doutor coube no macacão de piloto. Mesmo carregando uma maleta com todos os dados de pesquisa conseguiram deixar a base. Estavam todos a caminho de volta, quase comemorando, quando alguma coisa deu errado. Não dá para saber o que foi. Quem sabe algum decker corporativo percebeu a invasão ou outro funcionário se tocou de que a autorização de pouso e decolagem eram de um piloto desligado da empresa. Fato é que meia hora depois da partida meia dúzia de drones veio cuspindo fogo no vert-bird.

A diferença entre um piloto vagabundo que apenas “se conecta” à máquina com chips baratos e um verdadeiro rigger como Wild Bill ficou patente dos dez primeiros segundos de batalha aérea: 3 drones abatidos e nenhum tiro na aeronave. Mas um tiro de sorte acabou acertando o rotor de uma das asas e sem ele o vert-bird voava igualzinho a um tijolo.

Bill fez tudo o que podia para amortecer a queda. e conseguiu… com o custo de sua vida. A nave havia caído em algum lugar entre o laboratório da Future Lens e o ponto de extração. Floresta temperada. Meio densa. Todo mundo desceu mais ou menos inteiro. Pegaram o equipamento que podiam carregar e se puseram em marcha, seguindo Green-4 mata á dentro.

É… estava bom demais para ser verdade…