Os novos heróis do Olimpo – Capítulo 27

Na terra do sol.

 

 

Era a manhã do segundo dia de viagem quando Eric divisou a placa que dizia em letras garrafais: “Bem vindo á Fortaleza – terra do Sol”. Poucas placas poderiam estar mais certas quanto à parte de seus ditos. Eles não sabiam ainda se seriam realmente bem vindos, mas a parte de terra do sol era mais que visível. Mesmo com o ar condicionado da caminhonete funcionando ao máximo o calor ainda era notadamente desconfortável.

A viagem tinha sido mais rápida do que a previsão mais otimista de qualquer um. Depois de deixar a estância vampira e seguir pelas estradas, o caminho teve incidentes mínimos. Assim como dissera Hécate, sua filha estava devidamente ambientada no mundo dos mortais modernos, mas muito de seus trejeitos ainda lembravam alguém que tinha sido criada por uma rica família do interior. Embora ela tenha se mostrado uma companhia agradável – e talentosa uma vez que cantava lindas cantigas enquanto costurava pacientemente as roupas rasgadas dos colegas – boa parte do grupo ainda a olhava como uma inimiga em potencial. Lucas se recusava a sentar do seu lado. Apenas Eric e Oliver a tratavam com respeito e carinho.

– Então essa é a primeira parada da profecia. O que vamos achar aqui? – perguntou Nathália, olhos fixos na estrada.

– Bem de acordo com as previsões de Jade – disse Oliver sem levantar os olhos do tablet – ou pelo menos as previsões que ela fez quando estava desacordada, Fortaleza é o ponto de partida.

– “Na terra do sol, no altar do deus da guerra que foi rendido à mãe do Salvador, o primeiro passo da jornada será dado. Sozinhos ou juntos, a chave deve ser localizada. O guardião da chave deve ser convencido a contar o segredo. Só assim sua jornada pode continuar”. – recitou Lucas, sob o olhar incomodado de Jade. Ela mesma jamais fora capaz de se lembrar desse seu momento pitonisa e achava tudo muito desconfortável. Ela era uma guerreira, no fim das contas. Não tinha tempo para previsões.

– Imagino de que tipo de chave estamos falando. – bufou Eric quando um ônibus urbano superlotado o cortou pela esquerda – Cara, o transito aqui é de lascar. Ô vovózinha, cê não tem seta no seu carro não é? Não tem ou não sabe usar? – O trânsito de Fortaleza só não era pior porque ele era um semideus e sua mente era preparada para batalhas. Caso contrário…

– Pode ser qualquer coisa – disse timidamente Isabel. Ela estava vestindo uma calça jeans empresada de Oliver, junto com uma camisa amarela e preta do santuário. Usava um par de chinelos de dedo cedidos por Eric e mantinha os cabelos amarrados com uma bandana da harley que tinha sido encontrada jogada no chão de um posto de gasolina – mas se os deuses forem parecidos com minha mãe, podemos esperar o inesperado.

– Esperar o inesperado? Não é a coisa mais elucidativa a se dizer – comentou inquisitivo Oliver, enquanto decidia onde poderiam tomar café da manhã. Mais cedo Jade havia lhe incumbido esta missão e ele pensava em alguma coisa regional. Já havia estado no Ceará e conhecia o básico da comida cearense. Por fim, deu as coordenadas para que Eric os levasse até a famosa Praça das tapiocas, em Messejana. O GPS dava as direções para o insuspeito endereço da Avenida Washington Soares, 10215. O lugar era realmente muito bonito. Tinha uma rusticidade típica das vilas do interior do estado, mas mesmo assim com um charme muito bacana. Sentaram-se numa mesa e começaram a comer. As tapiocas, como explicou Oliver entre uma mordida e outra, é o nome de uma iguaria tipicamente brasileira, feita com a fécula extraída da mandioca. O recheio varia, mas o mais tradicional é feito com coco e queijo coalho. Mas haviam mais de 150 tipos de recheio no cardápio. Comeram até que não sobrou qualquer espaço nos seus estômagos cheios.

– E agora que já estamos devidamente entupidos até o talo, temos que achar um lugar para dormir. Tenho certeza que o nosso navegador ali já achou um lugar bom o bastante. – Lucas olhava com expressão de sono como se tantas tapiocas funcionassem como um tranquilizante.

– A bem da verdade eu tenho. Fortaleza é famosa por seus hotéis de luxo, especialmente na Avenida Beira-mar e na região da Praia do Náutico. Eu já experimentei alguns deles com o meu tio – uma sombra passou pelo rosto de Oliver ao lembrar-se do tio que continuava desaparecido – mas todos são realmente movimentados. Um grupo de moleques chamaria atenção demais. Eu penso que podemos ficar num dos hotéis mais baratinhos do centro velho, aquelas que se parecem pensões. Elas hospedam muitos estudantes. Na região da praça em frente da Justiça Federal é um bom lugar para começarmos a procurar. Podemos deixar o carro perto da delegacia. É mais seguro do que procurar um estacionamento pago.

– E como é que você ficou expert na geografia do centro de Fortaleza de uma hora para outra? – perguntou incrédula Nathália que terminara de arrotar sonoramente, enchendo sua boca com o perfume da última tapioca de carne seca que engoliu.

– Eu venho estudando os mapas da cidade e dicas de internautas desde que passamos pela fronteira do Estado. – disse Oliver, sem falsa modéstia – eu não sei como explica, mas quanto mais eu estudo é como se eu já tivesse vivido ali.

– Ok. Vamos supor que consigamos um hotel ali nas proximidades da Justiça Eleitoral do Ceará. E de lá, para onde vamos? – Eric parecia mais ocupado com uma garrafa de molho de pimenta e um pedaço de tapioca com doce de leite, chocolate e canela do que na conversa.

– Eu jamais pensei que diria isso, mas vamos nos separar e procurar – disse Jade soturnamente – a profecia diz: “Na terra do sol, no altar do deus da guerra que foi rendido à mãe do Salvador, o primeiro passo da jornada será dado. Sozinhos ou juntos, a chave deve ser localizada”. Sozinhos ou juntos – ela enfatizou de novo esta parte como se não gostasse nada dela.

– Eu também não concordo com o método “scooby gang” de fazer as coisas, mas acho que é a única coisa que podemos fazer agora. Vamos nos registrar num hotel pensão no centro, e conseguir alguns telefones para ficarmos em contato. – Oliver falou enquanto se levantava da mesa.

Foi pouco mais de uma hora e meia de Messejana até o centro. O transito de Fortaleza era absolutamente caótico. Mesmo um GPS como o frank tinha dificuldades de achar o trajeto até o hotel. Escolheram por fim um hotel/motel/pensão no centro. Os quartos eram todos de casal, mas poderiam ter uma cama de solteiro a mais por um custo. Um dos quartos ficou com Jade, Nathália e Isabel e no outro Lucas, Oliver e Eric. O hotel era adaptado numa casa antiga, de dois andares. A dona, uma senhora negra que atendia pelo nome de Zulmira mantinha tudo muito limpo e organizado. A sala da recepção era o próprio sincretismo religioso em pessoa: carrancas dividiam espaço com imagens de gesso de santos locais, como o Padre Cícero e Frei Damião, junto com uma imagem de madeira pintada Ogum e um sapinho da sorte (kero-kero).

Após se registrarem resolveram dar um volta pelas redondezas. O conhecimento dos mapas de Oliver não adiantaria de nada para eles se não conseguissem se localizar sozinhos.

Antes de sair para a sua busca Nathália arrancou um galho de um pé de juazeiro que crescia na frente da pensão. Fechou os olhos e jogou o galho para cima: ela resolveu caminhar para a direção que o galho apontara. Acabou caminhando sozinha até chegar ao Passeio Público de Fortaleza.

Segundo seu recém-adquirido celular, um robusto blackberry de teclado escuro, o passeio público, também conhecido como “praça dos mártires” era a praça mais antiga de Fortaleza. A praça, como a cidade em si tinha muita história: ali houve a execução dos membros da houve a execução dos revolucionários da Confederação do Equador: Azevedo Bolão, Feliciano Carapinima, Francisco Ibiapina, Padre Mororó e Pessoa Anta. Ali também houve a primeira partida de futebol do estado disputadas por marinheiros de navios ancorados no porto da cidade, ingleses residentes em Fortaleza e cearenses da classe alta. A praça passou por uns mal bocados, sendo famoso ponto de prostituição e tráfico de drogas até o final de 2007 quando ganhou uma revitalização. Agora, segundo o site que visitava era um point cultural, um mar de silêncio na cacofonia barulhenta do centro da metrópole.

Ela chegou a praça e viu que não podia confiar em todo o que se dizia na internet, a praça era bonita sim e tinha realmente jeito de que tinha sido reformada. A vista para o mar entardecendo era tudo o que prometia uma cidade que se chamava de terra do sol, mas a sujeira e o toque da depravação avançavam sorrateiramente. Logo percebeu um grupo de “mauricinhos” trocando drogas e algumas prostitutas mirins aliciando turistas incautos. Ela se sentou e resolveu esperar um pouco. Logo ela viu um senhor de idade se aproximando. Ele usava um uniforme antigo do exercito, desses que os pracinhas remanescentes da FEB usam nos desfiles de sete de setembro. Ele tinha bastante idade, mas ainda andava reto, amparado por uma bengala de madeira grossa. Na cabeça um gorro francês – provavelmente uma relíquia de guerra trocada com algum soldado aliado no front. Ela imaginou se um dia viveria tanto assim.

Foi quando ela viu. Quatro rapazes cercaram o veterano. Exigiam dinheiro. O velho os ignorou e seguiu seu caminho. Um dos rapazes o agarrou pelo ombro e levou uma bangalada tão rápida entre os olhos e o nariz que Nathália mal pode perceber, mas pelo som não foi apenas veloz, foi bem forte. O rapaz deu dois passos para trás e a sua imagem tremeluziu. A névoa se dissipou por um instante e Nathália viu que não eram pessoas comuns. Pareciam algum tipo de ciclope em miniatura. Quer dizer, miniatura para ciclopes que costumam ser gigantes corpulentos, mas para humanos normais pareciam quatro adeptos do fisiculturismo. Como era mesmo o termo que Karina usava, quando assistiam lutas de MMA na TV? Pityboys.

O soldado veterano estava cercado. Ele conseguiu se desviar de uma segunda tentativa de agarrada, mas um soco bem colocado o jogou ao chão. Um dos lutadores tentou aplicar-lhe um pisão, mas o veterano conseguiu rolar para debaixo de um banco. Um dos ciclopes arrancou o banco do lugar e o ergueu para golpear o homem. Foi quando uma adaga de bronze celestial o atingiu bem no meio do olho.

É engraçado como monstros mitológicos morrem. Alguns viram pedra e depois se espatifam no chão como se fossem estátuas; outros viram um punhado de pó e outros, ainda mais perigosos, explodem. Esse ciclope virou um monte de água com cor de isotônico de laranja e espatifou-se pelo chão, a adaga caindo junto e fazendo um baque metálico ao se chocar com o piso de pedra.

Os demais se viraram a tempo de encarar Nathália com seu gládio romano nas mãos, berrando um grito de guerra. Na sua primeira passada exterminou uma das criaturas, que caiu ao solo como um monte de isotônico cor de uva. Um deles resolveu correr, afinal dois de seus amigos já tinham sido despachados e o outro, amaldiçoado por não ter a mesma perspicácia, sacou uma faca do bolso e começou a combater.

Ele era bom. Acostumado com as batalhas. Lutava com desenvoltura e certa técnica, embora confiasse demais na força bruta e na aparência. Nathália não teve problemas para derrota-lo depois de uma sequencia de chutes bem colocados e uma estocada com a espada na altura do pescoço.

– Bravo, bravo! A solidariedade do soldado posta à prova contra uma força superior. O santuário ensinou bem a você, minha pequena.

A espinha de Natália gelou. Ela conhecia aquela voz. Aquela era a voz de Ares, o deus da guerra. A voz do seu pai.

 

Os novos heróis do Olimpo – Capítulo 26

Reclamados e presenteados

Eric mal podia acreditar. Estava mesmo correndo sobre a água. Do mesmo modo que o Flecha no filme dos Incríveis. Era demais. Ele percorreu a distância da cabana até o cais principal em menos de um minuto, gargalhando como um louco. Chegou a pensar em correr mais um pouco sobre a água, de tão divertido que estava, mas achou melhor não. Havia uma pessoa com ele. Alguém que ele acabava de salvar. Reprimindo seus pensamentos de diversão ele flexionou os joelhos e saltou em direção ao píer. Se ele não tivesse calculado tão bem, provavelmente teria deslizado para fora do píer, se estatelando na grama. Mas ao tocar o chão, as asas de seus pés bateram de leve, diminuindo a sua velocidade, permitindo a ele manter-se em movimento sem cair.

Ele começou a correr em direção ás escadas. Parecia ser uma boa ideia. Pena que o terreno era acidentado demais para seus pés. Diminuiu a velocidade até colocar Isabel no chão. A menina estava em estado de choque. Ela olhava tudo com um ar de espanto, incrédula. Só então Eric pode olhar para ela com mais calma. Tinha no máximo 16 nos e a pele era ainda mais clara do que ele tinha percebido. Sua roupa chamou atenção do rapaz. Era um vestido de algodão grosso, simples e muito puído. Ele percebeu que o vestido começou a se desmanchar como se alguma coisa no ar o estivesse dissolvendo. Imediatamente ele tirou o moletom e enfiou na menina. Como ela era baixinha o moletom serviu-lhe como vestido curto.

– Bom, er… Isabel… princesa… posso te chamar de Bel? Bom, Bel, temos de subir por aquelas escadas antes que a mulher má nos alcance. – Eric falava devagar, sentindo de alguma forma, toda a confusão da menina. Se ele tinha entendido bem a menina tinha pelo menos 700 anos e estava sendo mantida ali por algum tipo de magia sobrenatural. – Claro… por que a menina mais gatinha que eu tive nos braços nos últimos anos tinha que ter a idade do mestre ancião? – pensou Eric em voz alta.

Algo chamou a atenção do jovem. Um farfalhar a sua direita. Da mata surgiu um diabrete – ele era pequeno, vermelho dos pés a cabeça e parecia um figurante perdido nas hordas de Sauron, no filme o Senhor dos Anéis. Ele atacou desengonçadamente com uma espada que mais parecia um facão de ferro estragado. O menino esquivou com facilidade empurrando Isabel nas cadeiras espreguiçadeiras que ficavam ao lado da primeira piscina. Ele sacou a sua adaga de bronze celestial e despachou o monstrinho com golpe apenas. Por um momento posou como se fosse o Altair, da série Assassins Creed. Ele fez um lelva malabarismo com a adaga antes de guardá-la. Ele olhou para trás e viu mais dessas coisas desembarcando. Alguns eram bem maiores que um diabrete comum.

– Saída pela esquerda – disse ele agarrando o braço de Isabel e a forçando a subir alguns degraus. A menina parecia ainda mais letárgica.

Eric não tinha um plano. Aliás, quando foi que ele teve um? Ele simplesmente estava indo ao salvamento. Mas dessa vez não tinha ninguém para salvar sua pele. Pensou em todos que poderiam estar ali para ajudar: Karine, o professor Roberto, o sr. Dezan, a Jade… raios, servia até mesmo aquela zumbi atleta que tinha adagas em forma de costelas. Mas ele estava só, subindo as escadas com uma horda de demônios e a rainha dos condenados na cola dele. Outros dois diabretes o alcançaram. Estavam mais fortes dessa vez. Um atacou pela direita enquanto o outro fintava. Um chute bem colocado jogou o danadinho vermelho rolando escada abaixo. O segundo foi derrotado depois de uma troca de golpes.

A subida era ingrata. Eric não estava tão fora de forma como Oliver, mas também não era um primor de resistência como Nathalia. Ele já começava a pingar suor. As roupas molhadas, o piso irregular e arrastar Isabel também não estavam ajudando nada. Por fim alcançaram o topo que dava acesso aos estábulos. Horrorizado ele viu os cavalos todos transformados em pesadelos como kólasis, a égua infernal do professor Roberto. Ele pensou que cada uma deles poderia ser uma devoradora em potencial de semideuses.

– Olha meninas, vocês não querem me comer. Vejam só: pele e osso! – disse ele levantando a blusa e mostrando as costelas magras enquanto encolha a barriga – além disso, eu conheço a kólasis e ela é minha amiga. Ela não vai gostar nada de saber que vocês me devoraram.

Ele se sentiu meio idiota ao dizer isso, mas a sensação passou quando ele percebeu um sorriso delicado surgir no rosto de Isabel. Ele se forçou a continuar, passando rapidamente pelo prédio da administração.

O chalé estava a poucos passos. Estava quase chegando lá. Foi quando o brilho da lua deu lugar a um negrume de sombra, como uma centena de morcegos voasse por cima dela, encobrindo sua luz prateada. Os morcegos voavam em volta, escurecendo tudo e aumentando ainda mais a atmosfera de terror. Então ele percebeu que não eram apenas ratos alados. Dezenas de ratos normais, desses que andam no chão de cozinhas imundas estavam correndo desesperados para todo lado. De repente todos começaram a convergir para um único ponto. A massa de animais peçonhentos foi se juntando, dando origem a um semblante humano. O semblante negro foi ficando mais claro. Então ele divisou as feições de Mormo.

Ela estava linda. Sensual. Bela. Um pitelzinho. Eric sentiu os joelhos balançarem de emoção. Nem a mais inda das filhas de Afrodite eram tão bonitas. Mas quando ela sorriu o embasbacado da beleza deu lugar ao medo. O sorriso de dentes de tubarão demoníaco maculava sua beleza. Ela vestia um vestido negro, estilo Elvira a rainha das trevas, mas come peças de armadura por todos os lados.

– Parece que você achou o meu brinquedo pessoal filho de Hermes. Além de ter deixado a malcriada filha da rainha das harpias fugir – ela mostrou a corrente de prata na mão, com desdém. A rainha Ocípete vai ter a sua mais formidável guerreira de volta ao seu lado e todos os meio-sangues do mundo vão ser novamente caçados pela melhor caçadora de todos. Como você se sente de ter libertado um flagelo desses para todos os seus irmãos?

Eric não respondeu. Ele não sabia o que sentir. Estaria a rainha dos vampiros mexendo com a sua cabeça? Teria mesmo libertado um monstro dessa magnitude? Ele então sentiu o aperto do abraço de Isabel em seu braço. Ela estava com medo. Ele podia sentir o medo dela. Estava cansado de ter medo. Puxou a adaga de bronze celestial e apontou desafiadora para Mormo.

– Olha dona… eu já despachei para o Tártaro um sem número de bichos feios… filhos de medusa e cruzamentos de homens e formigas vermelhas. E alguns tão feios quanto você! – as feições de Marmo e contraíram terrivelmente e ela bufou de raiva. Eric havia acertado um ponto fraco da vilã – e nenhum de vocês foi páreo para mim. Sei lá, acho que vocês poderiam sair do meio. Saia do caminho e nada vai acontecer de ruim para você. Se me encher mesmo a paciência eu vou postar no facebook que você pinta os cabelos. – dizendo isso ele sacou do bolso um pequeno smartphone com o símbolo de Hermes e tirou uma foto. O flash fez o rosto de Mormo ficar ainda mais marcado por linhas de pura raiva.

“Deuses e coisas do mundo antigo não suportam mortais. Irrite-os. Use a raiva deles para fortalecer a si mesmo. Deuses poderosos, especialmente, não suportam ser espezinhados. Gente irritada comete erros terríveis; deuses irritados cometem erros divinamente terríveis” – as palavras de Hermes soaram na sua cabeça como se fossem uma mensagem telepática do mestre Yoda. A primeira parte do plano funcionara perfeitamente. Mormo estava possessa de raiva. E agora?

O grito de Isabel lhe chamou a atenção. No seu flanco esquerdo três diabretes fugidos do Senhor dos Anéis atacavam brandindo espadas de ferro. Uma explosão de ar impulsionou Eric para frente, passando na brecha que cada um dos inimigos em fila dava um para o outro. Foram três golpes certeiros: quando Eric chegou do outro lado o primeiro dos três já tinha caído, sendo logo seguido pelos outros dois.

– Ô tiazinha da Sukita, você não cansa não?

Marmo não respondeu. Escancarou a bocarra e vomitou uma torrente de fogo esverdeada, como a rainha má do desenho da Bela Adormecida. Era endereçada a Eric, mas atingiu uma meia dúzia de diabretes que surgiu atrás do semideus. O fogo incendiou algumas árvores, e destroçou um dos cupidos de uma fonte ali perto. A velocidade de Eric o manteve seguro o tempo todo. Ela urrou de novo, vomitando nova torrente, só que dessa vez maior e mais forte. Parecia um tornado horizontal de fogo verde demoníaco, destroçando tudo em seu lugar. Eric resolveu confiar nos instintos e começou a rir. Corria e ria, aumentando e diminuindo a velocidade, enquanto Marmo mantinha a torrente de fogo. Um chalé vazio teve as paredes varadas e o telhado da administração pegou fogo imediatamente. Diabretes em chamas corriam para todos os lados. Um dos cavalos demoníacos escapou dos estábulos e com ele o resto dos animais também fugiu. Eric esperava que o fôlego da mulher acabasse um dia. Algo do tipo para ontem. E foi o que aconteceu. A torrente de chamas parou e Eric viu marmo. Ela tinha a aparência de uma balzaquiana mal cuidada na casa dos 50 anos.

– O que foi vovozinha? O creme de beleza perdeu a validade? Talvez você deva passar a usar o leite de aveia “da véia”, feito á base de formol, para ver se essa sua pele de múmia para de parecer um maracujá de gaveta! – o tom de voz era tão zombeteiro que por um momento Eric se imaginou recebendo aqueles insultos. Ele quase ficou com raiva de si mesmo.

Uma nova torrente. Eric estava ficando sem lugar para correr. Os ataques de Marmo incendiaram tudo a sua volta. Não avia muito espaço para manobras radicais. “Foco, concentre-se na luta” disse a si mesmo. Foi quando tropeçou em alguma coisa. Uma raiz de árvore. Ele tombou, rolando pelo chão até parar no sopé do chalé incendiado. O calor das chamas o trouxe de volta a consciência. Ao seu lado, marmo erguia o que parecia uma enorme espada de prata. Tinha um jeitão de espada larga dos filmes de cavalaria, mas ele pressentia que a lâmina da espada não seria de efeito especial, como nos filmes.

– Odeio você! – ela disse, quando ergueu mais alto a espada para golpear.

Eric olhava paralisado, quando a lâmina ficou negra. Marmo desceu o braço, mas a espada não se moveu. Ela colocou a outra mão e forçou a lâmina para baixo. Nada. Foi que Eric ouviu:

– Gladius malum audierit vocem meam. Ego praecipio tibi, et domina, et state in ea.- Era Isabel. Ela estava com o capuz do moletom puxado sobre a cabeça, os cachos dourados descendo pelas laterais. As mãos moviam-se para frente e para trás como se suas mãos fossem pincéis e ela estivesse pintando um quadro imaginário na sua frente.

– Bruxa! – Marmo gritou enquanto projetava-se para frente a fim de atacar a menina. Quando foi detida por uma enorme frigideira voadora, acertando a sua face, bem acima da bochecha.

Eric olhou para o lado e viu Nathalia carregando Oliver. Na mão dele havia outra frigideira, sendo preparada para se arremessada. Uma flechada cortou o ar da noite, acertando marmo no ombro. Infelizmente fraca demais para atravessar o couro enrijecido do vestido. Jade estava sentada na cadeira de balanço, preparando outra flecha. Ela suava, o esforço parecendo coisa do outro mundo. Um tomate vermelho, já meio apodrecido, explodiu no busto da rainha dos vampiros e de lá vinhas de tomateiro começaram a crescer sem controle. Lucas usava uma bengala feita de cipós enrijecidos e parecia que tinha corrido uma maratona inteira.

Foi que Eric lembrou-se das garrafas. Divisou o local onde Marmo tinha se materializado. A caixa de carregar vinhos estava lá. Ele não pensou duas vezes – aliás, como nunca pensava – e forçando-se a esquecer da dor no pé da topada, correu para alcançar a bolsa. Ele pegou uma das garrafas de cor dourada e tão rápido quanto pode, jogou para Nathalia.

– Bebe tudo.

Nathalia soltou Oliver no chão que despencou como um saco de batatas. Ela pegou a garrafa e bebeu sem medo. Tinha aprendido a confiar nos amigos. Num instante suas feridas fecharam e ela se sentiu cheia de energia. Sacou sua espada e escudo e pôs-se a combater marmo que defendia seus ataques com garras. Cada golpe do gládio romano de Nathalia mais Marmo ficava velha e fraca. Finalmente ela gesticulou e uma força invisível jogou Nathalia longe. Foi que ela viu que era tarde. Os outros já tinham bebido do vitae e recuperado sua energia vital.

– Malditos sejam! Ela gritou, explodindo em milhares de ratazanas e morcegos, pouco antes da rajada de energia de Oliver e das flechas de Jade exterminarem alguns deles.

Marmo tinha ido. E muito tinha que ser conversado. Após as explicações e a conversa – que aliás, só deixaram mais dúvidas em relação á pequena Isabel, Oliver teve uma ideia que seria melhor pegar a estrada. O incêndio se alastrava sem controle e os outros hóspedes já tinham abandonado o hotel.

Pegaram o carro e rumaram para longe, deixando o Jardim das Delícias para trás. De volta à GO-446 pararam no que julgaram uma distância segura. Ouviram cuidadosamente a história de Eric e a de Isabel. Ela não sabia como tinha parado a espada de Mormo, que, além do mais, agora estava em seu poder. As palavras simplesmente surgiram na sua mente. Não era grego e sim latim. Ela sabia falar um pouco de grego. Sua mãe lhe ensinara, mas latim falava com facilidade.

– Eu simplesmente pedi que a espada não se movesse. A tradução certa seria: “Espada do mal ouça meu chamado. Eu sou tua dona e te ordeno e ficar imóvel.”

– Nada mal para um pedido – brincou Nathalia, ainda incrédula de ter tido dos os ferimentos curados.

O silêncio tomou contado grupo nos quilômetros seguintes. Foi que Oliver propôs.

– Por que não fazemos a cerimônia de reclamação? Para que o deus ou deusa parente dessa menina a reclame? Assim podemos ter mais respostas. Marmo pode ter alterado a mente dela para que ela acreditasse ser filha de um rei espanhol de 800 anos.

Eric notou que a expressão de Isabel ficou contrariada. Ele tomou a frente dizendo que era uma boa ideia e que era melhor não pensar nada de ninguém antes de confirmar a filiação da menina.

– Por enquanto tudo que ela falar é verdade. Não sabemos muito mas sabemos que é uma de nós. Ela me salvou. Tá, eu a salvei primeiro, mas mesmo assim.

– Tem razão irmão – interveio Oliver, num tom conciliador – ela salvou você e portanto tem direito a sua carteirinha de sócio dos salvadores de Eric em perigo – sendo que o resto da frase soou meio fininho demais para o gosto de Eric.

– Como é que é? – e quem foi que impediu quem de ser esmagado pelo punho de Zeus? Ou quem é que foi até o Mediterrâneo salvar quem montado num cavalo demoníaco devorador de semideuses?

– Chega. – a voz de jade mais uma vez mostrou-se soberana – Lucas, pare o carro. Temos uma cerimônia de reclamação para fazer.

Os preparativos foram rápidos. Um dos escudos de Nathalia foi usado como pira e instruções foram dadas a Isabel de como proceder. Ela não ficou nada feliz em saber que invocaria um antigo deus grego e que este deus era seu parente.

– Mas eu tenho mãe e pai! – reclamou ela em vão.

Ela passou pelo escudo e lá depositou a espada de Marmo. Era tudo de valioso que possuía. A espada foi consumida quase que imediatamente e suas cinzas esvoaçaram no ar. Parte delas voou sobre Isabel formando desenhos em seus braços e pernas. O restante concentrou-se num ponto. Dela surgiu uma mulher baixinha, de cabelos negros e longos, vestida como uma nobre espanhola da Idade Média.

– Minha pequena princesa… – disse a figura recém-formada – pensei que jamais a veria de novo…

– Mamãe – gritou Isabel correndo ao seu encontro.

– Obrigado por libertarem minha filha. Eu sou Hécate, a senhora da magia. – Ela gesticulou e falou em latim – Etcaro et sanguis meus, qui est scire, quod amissum saeculorum cognitionem venire in mentem. <<Que meu sangue e minha carne saiba quem é e que o conhecimento das eras que ela perdeu apareça sobre sua mente.>>. – Quando Isabel tocou-lhe ela se desmanchou em cinzas que terminaram por formar mais desenhos, desta vez em seu pescoço e costas.

– Uma filha de Hécate? Mas nem de graça! – Lucas empertigou-se. – Não precisamos de traidores aqui. Ela já foi libertada e reclamada. Já pode ir andando.

– Estou com Lucas – disse Jade, com uma frieza que espantou Eric e Oliver.

Isabel encolheu-se como se a magia de sua mãe estivesse depositando em sua mente tudo o que acontecera nos últimos 700 anos.

Eric pôs-se a frente de Isabel e disse:

– Eu não sei que jogo vocês malucos do santuário estão jogando, mas ela vem com a gente. Não sei como explicar, mas sei que precisamos dela.

– Vai ver você precisa! – disse Lucas em tom zombeteiro – parece até que já foi enfeitiçado por ela.

Oliver olhou para Eric e depois foi até Isabel. Ajoelhou-se perto dela, sacou sua espada e disse pausadamente: “Se por minha vida, ou morte, poder protegê-la eu vou. Você tem a minha espada”.

– Senhor dos Anéis cara… essa é clássica! Valeu.

– Disponha.

O grupo estava dividido. De um lado Jade e Lucas queriam expulsar a filha de Hécate. Por outro, Eric e Oliver estavam do lado dela. Bem, Eric estava do lado dela e Oliver estava do lado de Eric, por assim dizer. Restava Nathalia. Todos olharam para ela. Ela cruzou os braços e sentou-se no chão.

– É uma democracia, eu suponho – disse ela bufando – não me meto em política. Abstenho-me.

O empate retornara. E nenhum dos lados estava disposto a arredar o pé.

– Eu assumo a responsabilidade por ela. – a voz de Oliver era irretocável. Ele pontou sua espada para cima e depois para o nordeste, ou pelo menos para onde ele julgou ser o nordeste, e continuou – eu sei o que é estar separado dos pais num mundo sem amigos. Sei pelo que ela está passando. Eu assumo a responsabilidade por ela. Juro pelo meu sangue.

– Eu também juro! – gritou Eric, meio sem saber o que aquilo significava.

Jade parou e ponderou por um minuto. Não era a primeira vez que o filho de Astréia se mostrava conhecedor dos costumes do santuário. Ela tinha um ponto. Se ele era um membro aceito do santuário e aceitava um semideus sob sua responsabilidade, não importava que semideus fosse aquele, aquele semideus também era aceito. A contragosto ela falou:

– Apenas porque você se apoia na lei não significa que vou confiar nela.

– Então ela pode ficar? – Eric parecia uma criança pedindo um doce a um pai severo.

– Que os deuses me perdoem do que eu vou dizer, mas sim, ela pode ficar.

Um círculo arcano se desenhou no chão e dele uma nova imagem de Hécate surgiu. Dessa vez como todos se recordam dela nos livros de mitologia.

– Obrigado por aceitarem minha filha. Ela agora dorme, mas amanha será como vocês, como se tivesse sido criada neste mundo moderno. Ela não vai saber de tudo, por isso, peço paciência e que a protejam. As cinzas da espada de Mormo revelaram que além de ser uma semideusa, como vocês, ela também é uma das filhas da profecia, pois seu corpo e sangue se ligam ao destino de vocês pelas tatuagens místicas.

– Mas a profecia fala de apenas cinco. – protestou jade, como se esquecesse de que estava falando com uma deusa em pessoa.

– A profecia nem sempre está completa. Examine sua mente, filha da luz e verá que eu digo a verdade. Mas em tempo, você menino das estrelas que jurou lealdade a minha filha e você “cavaleiro”, tenho presentes para ambos. Escolham – Hécate estendeu a mão na direção dos meninos fazendo aparecer em sua frente vários globos de luz. Cada um deles tinha uma imagem diferente. Oliver escolheu a de um pequeno cavalo branco. Eric escolheu um par de asas.

– Muito bem – continuou Hécate.

O cavalinho que Oliver pegou era de mármore e derreteu-se em sua mão, escorrendo por seu braço até formar um desenho de um corcel branco em seu peito esquerdo. Oliver tocou a nova tatuagem e dela saiu um enorme cavalo, o mais perfeito de todos, feito de mármore puro.

– Ele é seu. Está ligado a seu sangue e sua sói. Chame-o pelo nome.

Oliver tocou a fronte do cavalo. Era quente e macio. Imediatamente a palavra surgiu em sua mente. “Marmarino”. O cavalo relinchou como se concordasse. Na cabeça de Oliver, ele ouviu vozes novamente, como o de uma criança brincalhona que lhe dissesse: adorei.

– Marmarino? – brincou Eric que ainda olhava suas asas nas mãos.

– A você cavaleiro, eu lhe dou asas ainda melhores. Com elas você poderá voar. Um presente que nem mesmo eu pai tem.

– Valeu dona!

Jade, Lucas e Nathalia foram sumariamente ignorados pela Deusa que sumiu em seguida. O cavalo branco voltou para o peito de Oliver. Nathalia pegou Isabel do chão e a depositou nos braços de Eric e Oliver

– Assumindo responsabilidades, hein?

O resto na noite ia ser longo…