Os novos heróis do Olimpo – Capítulo 19

Lambendo as feridas

“O destino é uma donzela caprichosa”. A frase, escrita no primeiro biscoito da sorte que Oliver comeu parecia martelar sua cabeça enquanto ele corria pelas vielas e becos do setor militar urbano. Ele era o último da fila de garotos semideuses que corriam por suas vidas. Nathália também fazia questão de não facilitar a corrida para ninguém: cruzava praças e dava voltas em prédios, entrava e saía de becos para virar inesperadamente, sem direção ao que parecia. Mas quando Oliver viu a mochila de Lucas saltar por sobre um muro de Madeirit ele pensou que ia morrer. Com dificuldade ele saltou o muro, caindo pesadamente e de mau jeito do outro lado.  O som atraiu a atenção dos outros. Não que Oliver ouvisse o que diziam, ou mesmo que se importasse. Ele estava tão cansado que mesmo que Zeus estivesse na sua cola ele não daria mais um passo.

– A vida de CFD não ajudou nada no preparo físico, hein irmão? – a voz de Eric soava entrecortada pelo ribombar do coração de Oliver e pela sua ofegante respiração – Toma, pega um pouco de água, mas bebe devagar.

– Por que paramos? – Jade voltava incrédula com a cena, arco com a flecha meio preparada, pronta para ação. Atrás dela, sentado num galho baixo de mangueira estava Lucas, que olhava a tudo com curiosidade, sem expressar nenhuma emoção.  – os nossos perseguidores podem estar a poucos passos daqui. Temos uma missão a cumprir!

Nathália surgiu silenciosamente ao seu lado. Ela estava com o rosto inchado e a região dos olhos estava vermelha. Ela engolia o choro com dificuldade, respirando em meio aos soluços espaçados. Por fim, ela dobrou a manga da luva sem dedos, revelando um relógio estilo “militar”, desses que poderia ter sido o parceiro ideal de Arnold Schwarzenegger nos seus filmes de ação dos anos oitenta. – Podemos ficar cinco minutos. Dez no máximo. Verifiquem o equipamento. Vejam se não perderam nada. Ferimentos, suprimentos e dinheiro, nesta ordem. Bebam água se quiserem. Mas estejam prontos para partir.

Oliver agradeceu silenciosamente a pausa e resolveu olhar à sua volta. Estavam numa espécie de clube campestre. Desses com piscinas e quadras de esporte, local para churrasco e coisas assim. O típico local que as crianças normais rezam para serem levadas num domingo de sol. Mas estava tudo esquecido. Abandonado era a expressão certa. A grama onde estava sentado fazia parte de o que um dia foi um lindo jardim. Quem sabe até um campo de golfe miniatura. A pintura dos móveis estava descascada e queimada de sol e tudo dava uma impressão de que já vira dias muito melhores. Forçou a vista e leu uma placa enferrujando na sombra: Clube Pandiá Calógeras. Seu lugar para eventos desde 1967. Por fim ele sentiu umidade na mão e a ergueu para ver melhor. Estava empapada de vermelho.

Eric foi o primeiro a ver a mão do amigo. O sangue vinha de um corte na altura do antebraço. Um golpe de raspão incapaz de cortar fundo o bastante para romper vasos sanguíneos importantes. Mas havia algo errado. O sangue brotava sem parar da ferida. Num minuto Oliver sentiu-se tonto e fraco. E não era pela visão do sangue. Disso ele não tinha medo. Havia alguma coisa na ferida. Jade aproximou-se dele e viu o ferimento.  Ajudou o amigo a tirar o moletom do Linkin Park e inspecionou a ferida. Logo ela puxou um nécessaire de sua mochila. Era branca, feita de lona, com uma discreta cruz vermelha na aba esquerda. Ela abriu com um clique e calçou um pequeno par de luvas descartáveis. Ela abriu um frasco que parecia conter álcool e despejou o sem conteúdo numa vasilhinha de porcelana. Depois colheu um pouco do sangue de Oliver com a ajuda de um cotonete e depois limpou o cotonete na vasilhinha. A cor do líquido começou a passar do vermelho para o verde. Ela cheirou o conteúdo recém-formado, e fazendo uma cara feia jogou tudo fora, bem longe de todos os outros. Por fim, pegou um outro frasco, ainda menor, de cor amarronzada e rolha de cortiça (como se tivesse saído da maleta de um velho boticário do começo do século XVIII) e colocou um pouco num algodão e passou a limpar a ferida de Oliver. Num primeiro toque o menino gemeu, mas depois o ardor foi dando lugar a uma sensação de calor agradável.  Poucos minutos depois a respiração de Oliver voltou ao lugar e ele sentiu-se bem melhor.

– Veneno – disse Jade guardando o seu material – eu limpei a maioria e você não deve sentir nada de muito mais sério, mas acho que pelos próximos dois dias você vai se sentir meio fraco. Ajudem-me a levá-lo para aquela área coberta ali. Vai ficar mais confortável.

– Como você sabe? – Oliver perguntou honestamente, o resto do veneno nublando sua capacidade de esconder o espanto.

– Sou filha de Apolo, tolinho – disse ela, com um lindo sorriso iluminando o rosto – além de deus do sol, e das premonições, Apolo também é o deus da cura. Sou uma curandeira nata. – esta última parte da frase soou sem qualquer convicção e ela virou o rosto como se estivesse envergonhada da sua habilidade. – Bem, sou uma curandeira hoje. Nunca tinha desenvolvido o dom. mas quando vi você ferido simplesmente comecei a trabalhar. Era instintivo.

– É o lance do kaioh-ken que eu falei para você irmão – disse Eric – somos um bando de semideuses super sayajin soltos por aí.

Jade ignorou a brincadeira do companheiro e continuou a fazer curativos em Oliver. Por fim espalhou um pouco de pomada rosa pastosa de cheiro adocicado num pedaço de gaze e cobriu a ferida, prendendo-a em seguida com um pouco de esparadrapo.

Nathália olhou o trabalho da amiga e soltou uma expressão de espanto. Nem mesmo a Dra. Cassandra fazia curativos tão bem. Ela sorriu para a amiga que entendeu na hora o cumprimento silencioso.

– Se eu não soubesse eu diria que você usou bruxaria. – a voz de Lucas soou sombria, ainda sentado em baixo da mangueira, só que dessa vez acompanhado por uma dúzia de mangas rosas do tamanho de mamões papaia. – Se não soubesse eu diria que parece coisa de filho de Hé…

– Nem se atreva a pronunciar esse nome! – a voz de Nath explodiu com seriedade ímpar – Não fale desses traidores.

Lucas recolheu os ombros, mostrando a palma das mãos num claro aceno de paz. Não que fosse o bastante para calar a atiçada curiosidade de Oliver e Eric. Os dois se entreolharam como se estivessem combinando alguma traquinagem e antes que o assunto pudesse ser mudado, Eric perguntou: – Filhos de quem? De quem vocês estão falando, ou melhor, evitando falar?

– Bom, vocês não sabem não é mesmo? Na década de 60 um bando de semideuses adultos se rebelou contra o santuário, aliando-se a Gaia, a deusa-mãe. Esses semideuses trouxeram dor, morte e destruição para o santuário. Todos filhos de Hécate – Jade limpou a garganta e fez o som como se estivesse escarrando e cuspindo, embora nenhuma gota de saliva tenha deixado seus lábios. Desde então, por seu crime, os filhos de Hécate são banidos do Santuário.

– Banidos não – corrigiu Lucas – mas não são bem vindos. Faz mais de 15 anos desde que o último filho de Hécate abandonou o santuário em busca de um lugar melhor. Para ele e para todos nós.

– Nem acredito que semideuses podem ter esse tipo de preconceito – falou Eric, levantando-se e buscando na sua mochila um pouco de linha e agulha para costurar o moletom avariado. – No que me consta vocês estão cuspindo no prato de maçãs apenas porque uma delas veio estragada no meio do cesto.

Nath e Jade fuzilaram o filho de Hermes com um olhar dardejante. Se qualquer uma tivesse o poder de arrancar a pele dos outros com os olhos, Eric teria sido vaporizado. Um minuto de silêncio desconfortável surgiu entre eles. Por fim Oliver falou, como se tivesse ponderado por horas.

– Deu a hora do ônibus. Acho que perdemos a nossa condução.

– Pois é. O nosso plano de viajar discretamente para Fortaleza havia ido por água abaixo. E, até onde eu me lembre, não temos um plano “B”. O que é que vamos fazer? – Jade pareceu desanimar, como se só agora a adrenalina do combate tivesse baixado.

– Não temos muitas opções. Tenho certeza que a rodoferroviária vai estar lotada de agentes inimigos à nossa procura. Ir até lá seria uma loucura, mais ou menos como andar em direção à boca do leão. Não podemos ir de avião também. Chama muita atenção, sem falar que mesmo com Zeus encarcerado, o céu ainda é inimigo de pelo menos um de nós – todos olharam pesadamente para Oliver – O que nos resta? Caminhar até lá?

A pergunta de Lucas soou como uma sentença de morte para um condenado. Mesmo a combativa Nathália esmoreceu-se um pouco, buscando apoio num velho balde de tinta virada de cabeça para baixo. Por longos minutos tudo o que se ouviu foi o vento soprar pelos galhos da mangueira ou o barulho de um ou outro jipe cruzando a rua por trás do Madeirit.

Por fim, depois de inspecionar o frank por alguns minutos, Oliver falou triunfante:

– Já sei como podemos ir. E vamos em grande estilo. Todos olharam com curiosidade enquanto ele desenhava no chão de cerâmica vermelha com um pedaço de gesso. No fim o plano era louco, mas reascendeu a esperança no coração de todos eles.

Regras para que te quero.

A mecânica realmente importa tanto?

Quando comecei a jogar RPG eu tinha apenas um livro e um dado: Aventuras Fantásticas – a cidadela dos ladrões e um dado de seis lados que achei perdido em algum lugar da casa. A única mecânica que eu conhecia era do tri-stat do fantasy flight: games Energia, Habilidade e Sorte. Durante muito tempo foi tudo o que eu precisei saber para me envolver em dezenas de aventuras, conhecer lugares distantes, lutei ao lado de heróis, distribuí magia arcana como Silvio Santos distribui aviõezinhos de 50 reais, falei com reis e bebi tanto quanto um anão em tabernas pelo mundo a fora.

Depois eu conheci D&D, por intermédio do Zed, ao qual sempre serei grato; pouco depois comprei GURPS (deve star por aqui em algum lugar); AD&D pela Abril jovem; Desafio dos bandeirantes, Vampiro, Shadowrun… e alista vai e vai até fechar algo perto de 80kg de livros, cenários,  sistemas e mapas.

E uma coisa que eu descobri ao longo dos anos é que a mecânica não importa tanto assim – a não ser que você jogue Demos Corporation ou MERP. Que o que importa mesmo, a meu ver é se divertir. Não faz muita diferença a curva de sucessos ou a margem de acerto desde que você esteja se divertindo na mesa de jogo. Boa companhia, algumas risadas, junk food… tudo isso faz parte da mítica que eu acredito, encarna uma parte pequena, porém importante da arte milenar de contar histórias em torno da mesa de jantar.

Claro isso não implica dizer, em momento algum, que você não pode se divertir com a mecânica. Ora bolas a diversão é tão pessoal quanto os seus dentes e o uso que você faz deles! Se você acha que a mecânica é importante ara a sua diversão, ora que seja! Se você acha que saber o modificador de peso que cada uma das moedinhas de ouro que você carrega fará realmente diferença, não se faça de rogado. Puxe uma calculadora – científica ou não – e comece e calcular. Tenho amigos que se divertem assim faz anos, construindo naves para o Jovian Chronicles (devo admitir que nunca passei da construção de personagens).

Sendo assim, parto para o final buscando um trampolim para a reflexão: as regras importam tanto assim a ponto de você ficar chateado com o seu uso? A ponto de você se ofender quando alguém usa uma regra que você não gosta? A ponto de escrever o seu próprio capítulo de regras de combate e manobras de combate ? Decida por si mesmo.

Os novos heróis do Olimpo – capítulo 18

Na estrada

Os dias seguintes foram de preparação intensa. Todo mundo praticamente se mudou para o chalé 00. Se preparar para uma missão dava trabalho: tinham de pensar em como chegar a Fortaleza, que equipamento carregar, as roupas, enfim, era uma verdadeira maratona.

Apesar de toda a bagunça e dos riscos Oliver estava feliz. Havia reencontrado a mãe depois de tantos anos e agora, pela primeira vez na vida, tinha amigos da mesma idade. Não apenas amigos quaisquer: amigos que partilhavam boa parte do que ele mesmo era, do que ele sentia e de certa forma, do mesmo destino. Ele estava se sentindo em casa.

Os dias eram divididos em preparação e treino. Tinha melhorado bastante com o uso da espada, embora dos cinco da profecia fosse o menos habilidoso. Até mesmo o novato, o Lucas, se saía melhor do que ele.

Ao final de mais uma semana estava tudo pronto. Iriam com a van do santuário até a rodoferroviária de Brasília e de lá pegariam um ônibus. Oliver e BêPê já tinham preparado um monte de identidades falsas e ele mesmo já tinha marcado pelo menos uma dúzia de passagens aéreas para ele e seus amigos. Se os inimigos estivessem monitorando a rede, como ele achava que estavam, teriam muito trabalho para seguir todas aquelas pistas falsas.

A van do santuário era uma citroen branca, pintada com faixas amarelas onde se lia “escolar”. A porta lateral se abria com facilidade e ela podia carregar até 12 pessoas por vez. Na parte de trás contava com teto solar e contava com espaço extra para carregar armas e armaduras.

Filoctetes dirigia a van e a viagem foi mais que tranquila até chegarem a uma cidadezinha chamada São Sebastião – quase metade do caminho até a estação de ônibus. Eric usava suas costumeiras bermudas cargo, cor de caqui, alpercatas de couro e uma camiseta do santuário, coberta com uma dúzia de botons diferentes. Trazia uma mochila de viagem, dessas que os mochileiros da TV gostam de usar. Do lado dele, a contragosto, vinha Jade. Os cabelos foram amarrados num rabo-de-égua firme e tradicional. Usava a camiseta do santuário por baixo de uma jaqueta de curo fino marrom desbotada. As botas pretas de cano longo, morriam em calças jeans strech de azul muito vivo. Além da mochila de viagem trazia uma alijava coberta nas costas. Completando este banco da van, entre jade e Eric vinha Nathália. O seu guarda roupa parecia ter sido tirado de uma loja de suplementos militares: Ela vestia um par de calças camufladas cinzas do exercito, coturnos pretos e bem lustrados – desses feitos para marchas muito longas – camiseta do santuário (com mangas cortadas fora) e luvas sem dedos. Amarrada na cintura, um moleton da Royal Navy Academy. Sentado sozinho no fundo da van, o pensativo Lucas vestia-se como se estivesse indo para uma feira hippie: óculos redondos roxos, à moda de Jonh Lennon, uma camiseta indiana branca cheia de detalhes de costura por cima da camiseta do santuário, calças folgadas de algodão simples e costura reforçada. Calçava um par de chinelos tão gastos que Oliver tinha certeza que eles já tinham visto mais do mundo que qualquer um dali. Já Oliver estava com seu agasalho do Linkin Park, boné preto do Chicago Bulls, calça jeans e um par tênis confortável. Além da mochila que herdada do pai, ele trazia nas mãos o seu inseparável tablete-celular-torradeira. Frank havia recebido um upgrade de peças. Incrível como alguns desenhos podem ser a diferença na explicação de instruções para um filho de hefesto.

Sentado ao lado de Filoctetes, na cabine da van, a tarefa de Oliver era escanear as notícias e os movimentos incomuns das forças de segurança. Ele dançava os dedos pelo tablete, abrindo e fechando páginas numa rapidez impressionante. De tempos em tempos pedia que virasse em alguma rua especial ou fizesse um desvio para uma quadra comercial. E sempre que Filoctetes fazia isso eles conseguiam desviar a tempo de alguma blitz ou de alguma operação de reparos do governo do estado ou mesmo do atendimento de uma ambulância do samu. Apesar da cidade apresentar a mesma pulsação de sempre os ocupantes da van sabiam que aquilo era pura ilusão. Qualquer deslize e estariam cercados por homens da giges, homens de preto ou coisas ainda pior.

Em pouco tempo a van chegou no setor militar urbano de Brasília – um bairro planejado para receber e servir de moradia para todos os membros das forças armadas. Era um conjunto de casas, clubes e campos verdes muito aprazíveis, a não ser pela eventual passagem de um jipe do exército com soldados armados com rifles de assalto ou encontrar um tanque de guerra M60 Patton estacionado casualmente na frente de alguma residência. Durante muitos anos ali fora a única casa que Nathália havia conhecido, antes de Ares, o deus da guerra reclama-la como filha. Casualmente ela começou a comentar:

– Quando eu estudava no colégio militar, depois das aulas vinha treinar judô e jiu-jitsu naquela academia. Bem ali na frente tem uma praça que serve o melhor cachorro quente de Brasília. Ah, estão vendo aquela casa ali, com uma dúzia de soldados na porta? É a casa do General Cordeiro da Cruz, um dos mais famosos filhos de Ares de todos os tempos – pelo menos no brasil.

– E ali, senhoras e senhores, temos uma árvore. Mas não é uma árvore qualquer, não senhor. Ali é uma árvore com 12 soldados camuflados em treinamento. “Soldado Oliver eu não vi você no treino de camuflagem! Obrigado senhor!” – ao terminar de falar Eric fez uma caricata imitação de um soldado batendo continência. Se fosse um show de standup comedy ele teria uma reação muito melhor dos seus amigos. Jade abriu um leve sorriso, assim como Lucas, Oliver riu alto, mas o seu riso morreu ao ver o rosto de Nathália pelo retrovisor. Filoctetes riu alto também, mas depois parou abruptamente, fechando a cara de novo – como aliás ele estava a viagem toda.

– Você deveria ter mais respeito pelos outros, Eric. Especialmente porque o seu pai usa uma cuia com asas de pombo na cabeça e é conhecido como o patrono dos ladrões.  – Filoctetes soou grave como um professor severo que corrige um aluno que tinha acabado de fazer alguma traquinagem na sala de aula. – preciso de vocês vivos e focados. Concentrados na sua missão. Preciso de vocês…

Filoctetes não chegou a completar a frase. O asfalto logo a frente da van explodiu como se algo a tivesse atingido. Os estilhaços de metal e de pedra estraçalharam o vidro da frente do carro estourando também os pneus da frente. Filoctetes e Oliver só não se feriram por que a espada de Oliver sacou-se sozinha e converteu-se num enorme escudo romano. Á frente um tanque Leopard 1A5, de fabricação alemã bloqueava a rua, seu cano ainda fumarando pelo disparo. Em volta dele uma dúzia de soldados esqueletos, vestindo roupas esfarrapadas se preparavam para avançar. O primeiro que deu dois passos para além do tanque foi alvejado por uma flechada certeira. Jade já tinha aberto o teto solar da van e por ele disparava com seu arco retrátil – uma interessante peça da oficina de Hefesto. Quando fechado o arco era pouco maior que um estojo escolar, mas quando aberto ele tinha o mesmo tamanho e potência de um arco longo composto de caça.

A porta lateral se abriu e de lá Nathália saiu, espada e escudo em punho. Tão logo ela desceu da van foi atacada por três esqueletos, idênticos ao que Jade acabara de derrubar. De perto eram ainda mais feios que de longe e pior: se movimentavam com muito mais desenvoltura e agilidade. Estavam todos armados com facões, típicos da tropa de selva. Aliás, esse era o fardamento que eles usavam. O fardamento da topa de selva que lutou contra a guerrilha do Araguaia na década de 60. O primeiro veio com um golpe estranho, como se Nath fosse algum arbusto que ele precisasse cortar para continuar seu trajeto pela mata fechada. Tão rápido quanto veio o ataque veio sua resposta: ela desviou-se graciosamente para o lado, golpeado com a espada no pescoço exposto do esqueleto. O golpe soou seco, como quando um açougueiro corta um grande pedaço de osso buco com um cutelo e logo depois o esqueleto desmontou no chão, desfazendo-se em poucos segundos. Aproveitando o balanço do golpe ela acertou o segundo que vinha logo atrás e usou o corpo dele para se proteger do ataque do terceiro.

Oliver ainda estava com a cabeça zonza. Ele sabia que tinha de sair e combater, mas os braços simplesmente não acompanham os comandos da sua mente. Mova-se! Pensou ele, pouco antes de sair do banco, bem a tempo quando uma seta atingir bem onde ele estava sentado. Ele saiu cambaleando da van, espada em punho. Golpeou a esmo quando foi atacado pelos esqueletos. A cada golpe sua cabeça melhorava, ele conseguia ver com mais facilidade. Em pouco instantes estava tão ágil como poderia estar.

Em poucos segundos a emboscada estava desfeita e os inimigos de atacantes passaram a ser acuados. Mas mesmo acuados não pareciam que iam desistir tão fácil. A torre do canhão moveu-se novamente, corrigindo a distorção do primeiro disparo: desta vez atingiria em cheio a van destruindo tudo nela e em volta dela. Filoctetes gritou que os alunos se protegessem e ele mesmo tentou fazer o mesmo. Mas não parecia haver tempo hábil. Foi quando aconteceu.

No começo parecia ser apenas um leve tremor de solo, seguido por uma leve rachadura no asfalto, como se ele não suportasse o castigo das incontáveis toneladas do tanque. Mas era algo mais. Como um rugido selvagem e não natural os galhos verdes como ervas daninhas cresceram numa velocidade impressionante, cobrindo o tanque num primeiro momento. Segundos depois o tanque fora completamente coberto pelas vinhas verdades e as mesmas começaram a mudar de cor para um marrom grosso e forte. Num instante o tanque estava todo tomando, por uma mistura de trepadeira e gameleira, intrincada, como se tivesse crescido sem controle mais décadas. Os esqueletos que ainda não tinham sido alvejados por Jade e suas flechas certeiras correram em direção ao tanque, facões em punho tentando libertá-lo. Mas a cada golpe que davam, a cada galho que cortavam mais e mais galhos tomavam o seu lugar. Um deles foi simplesmente engolido pelos galhos e esmagado como se uma enorme cobra constritora esmagasse um cesto de vime. Num último esforço para se libertar o tanque disparou, mas o cano do canhão, retorcido pela força dos galhos, fez com que a munição explodisse ali mesmo. O tiro, literalmente, saíra pela culatra.

A explosão causou mal estar na tropa dos esqueletos. Muitos deles pareciam simplesmente terem sido desligados, como brinquedos de rádio controle que ficam longe demais de seus operadores. Alvos fáceis para campistas treinados. Mas sempre havia um golpe de sorte. E a vítima fora Filoctetes. Ela havia tropeçado sobre um galhos da enorme gameleira gigante e um esqueleto trespassou seu peito com a espada.

– Filoctetes! – gritou Nathália, abrindo caminho entre os esqueletos caídos para checar o amigo mentor. A situação não era nada boa. Ele já tinha a palidez da morte quando ela o alcançou. – Aguente firme Filoctetes. Eu tenho ambrosia aqui na minha mochila. Um gole e você vai ficar novo em folha.

– Não… – ele tossiu sangue para cima, emprestando cor a seu rosto por um instante – estas armas foram feitas para envenenar semi-deuses, mas parece que tem um efeito diferente sobre servos dos deuses, como eu. Saia daqui pequena. Guie seus amigos para longe. Você sempre foi valorosa. Leve-os e salve o Olimpo. Vá! – ele tossiu novamente e Nathália foi afastada pelas mãos de Oliver. Ela tremia, sabe-se de dor ou e ódio. Mais a frente Eric chamava a todos. Ao que parece a névoa não estava sendo o bastante para manter os mortais afastados e cedo ou tarde – mais para cedo – toda aquela área estaria cheia de pessoas. Cheio de pessoas significava cheio de inimigos. A contragosto Nath seguiu com os amigos, guiando-os através dos becos do setor militar urbano.

Os novos deuses do Olimpo – Capítulo 17

Descobertas serão feitas e coisas serão quebradas

Jade abriu os olhos sentindo a cabeça latejar. A iluminação indireta da sala de recuperação era familiar e ela deixou os olhos entreabertos enquanto eles se acostumavam a iluminação difusa da sala. Ela estava coberta de pequenos curativos, dos pés a cabeça. Cada movimento doía um pouco e ardia como uma centena de cortes de papel pelo corpo todo. Ao lado da sua cama estava uma mesinha branca, com um vaso de flores e um copo de suco de ambrosia, coberto por um lenço branco e um canudo de plástico ao lado. Um ruído chamou sua atenção e ela virou a cabeça para o outro lado. Era Nathália.

As ataduras de Nathália cobriam todo o peito e a lateral do corpo. Eram duras e num ponto logo abaixo da axila estava uma mancha de sangue pisado. Ela se esforçava em silêncio para vestir a sua camiseta do acampamento. Na mesinha ao lado dela o mesmo vaso de flores, mas o copo de ambrosia estava quase vazio. Num movimento Nathália virou-se e duas se encararam.

Foram alguns segundos de silêncio espantado. Na cabeça de Jade vieram todos os atos de loucura que havia cometido. Mas não era ela. Alguma coisa ou alguém havia tomado conta do seu corpo, alimentando de forma doentia sentimentos de rancor que ela nem sabia que existiam, fazendo-a atacar uma colega campista. O espanto deu lugar ao remorso e ao arrependimento legítimo. As lágrimas não demoraram a nascer em seu rosto, escorrendo até manchar a camisola que todos os doentes eram sumariamente obrigados a usar. O ver as lágrimas da amiga, Natália desmanchou o rosto sisudo e sua expressão tornou-se serena e aconchegante. Ela se aproximou de braços abertos e envolveu Jade num abraço longo. Logo as duas estavam chorando. Longos minutos se passaram, onde nada se ouvia exceto a respiração entrecortada por soluços e tomadas de fôlego das duas.

 – É bom ver que as duas já estão em condições de chorar e de se vestir. Ainda bem porque tem uma verdadeira multidão lá fora esperando para saber notícias. E sinceramente, estava ficando sem opções médicas para dar. Vem cá, alguma de vocês namora aquele novato, o Oliver? Ele não pára de perguntar de cinco em cinco minutos como vocês estão. Menininho chato aquele.

Jade e Nathália reconheceram de imediato a voz da Dra. Cassandra, a mais famosa das filhas de Apolo. Famosa por várias razões: desde seu lendário dom de cura, passando pelo seu empenho como profissional e heroína até o seu casamento com um filho de Hades. Uma filha da luz casada com um filho do senhor das trevas. Não deixava de fazer valer aquela velha máxima de que os opostos se atraem. A dra. Cassandra era irmã gêmea de Margareth, a oráculo, e pelo jeito o tempo tinha sido bem mais gentil com ela.

Ela andou até a cabeceira de Jade enquanto o abraço das duas meninas se desfazia. Ela pegou o copo de ambrosia, tirou o lenço e deu a Jade. Beba, vai te fazer bem, ela disse com uma expressão de “melhor beber porque eu não aceito não como resposta”. Enquanto Jade bebia o suco de ambrosia em goles pequenos a doutora voltou suas atenções para Nathália. A expressão de altivez da menina se desfez quando a médica olhou feio para os curativos.

– Nathália, eu acho que eu já expliquei isso uma centena de vezes para você e seus irmãos. Filhos do Deus da Guerra são bons para causar ferimentos, mas saram na mesma velocidade que o resto de nós. A não ser que você queira passar uma semana de repouso sob minha atenta supervisão pessoal é melhor voltar para aquela cama e esperar o suco de ambrosia fazer efeito. A sua regeneração é mais lenta que a ambrosia comum, mas você não corre o risco de entrar em combustão espontânea enquanto bebe.

Jade se levantou e foi ao banheiro. Suco de ambrosia realmente ajudava a soltar o intestino mais do que qualquer iogurte com nome chique. Mas foi Nathália que quase engastou ao ver a tatuagem nas costas de Jade: um enorme sol, e dentro dele no formato da letra grega ômega, uma harpa com duas flechas cruzadas. Nath levou a mão à boca, como se quisesse impedir o gritinho de espanto. Estava diante de um dos heróis da profecia. A palavra “traidora” nasceu na sua mente antes que ela pudesse censura-la. Jade percebeu e olhou no espelho do banheiro e subitamente perdeu qualquer vontade de usar o toalete.

– Vocês estão bem, que bom! – a voz era de pura felicidade e vinha de Karina. Ela estava com roupas de treino e trazia uma sacola com espadas de madeira que foi prontamente jogada no chão do quarto, para desespero da dra. Cassandra.

– Sabem meninas, às vezes, só às vezes eu queria que o meu marido me ajudasse nisso aqui a colocar ordem nessa clínica. – desabafou a doutora, pegando a sacola de treinos com a ponta dos dedos, como alguém que catasse do chão uma fralda recém-usada.

– Olha amor, o seu desejo pode acabar se realizando hein? – Roberto pôs a cabeça para dentro do quarto, com seu bronzeado inexistente contrastando com seu terno marrom e a camisa preta de gola rolê (que deve ter sido moda em algum ponto perdido entre as décadas de 60 e 70). – E então, as guerreiras estão bem? Ou vão começar a jogar flechas e pedras umas nas outras?

Jade fez menção de responder e Nathália quis protestar, mas Roberto tinha uma fama maior do que a coragem das duas. O filho de Hades estava diante delas, falando com elas. Era o bastante para pôr a maioria dos campistas com pesadelos por uma semana.

– Não se preocupem – disse ele em tom casual, porém firme – nós já sabemos que a mente de Jade foi possuída. Temos boas notícias e más notícias. Qual delas vocês querem ouvir primeiro?

A careta de Jade só não foi pior que seu estado de espírito. Ela já tinha ouvido falar de possessão antes, mas nunca pensou que pudesse acontecer justamente com ela. Ela sempre achara que sua mente seria mais forte, afinal era a favorita de seu pai até aquele dia. Ele a chamava de “meu pequeno raio de sol”.

– Ok. As más notícias primeiro: Só não sabemos por quem, ou se você está livre da influência dessa dominação. Aliás, não sabemos nada. Se não fosse por Lucas, provavelmente uma de vocês, ou mesmo as duas estariam mortas.

A dra. Cassandra limpou a garganta e olhou fixamente para o marido que entendeu o recado na mesma hora, emendando a sua fala em seguida:

– Claro, não podemos esquecer dos talentos da minha princesinha, a médica dos deuses, dra. Cassandra. – ele andou em direção a ela, com os braços abertos como se pedisse um beijo. Ela negou com uma expressão de quem diz “na frente das meninas não”. Ele entendeu e afastou-se, continuando a falar. – E agora a julgar pelo que estou vendo já temos a última heroína da profecia. Não sabia que era você Jade. Nathália foi a primeira, Eric e Oliver foram os seguintes. Jade fecha como a quinta de vocês.

– E quem é o quarto herói?  – disparou Karine, olhos arregalados, mais de medo do que de curiosidade.

– O mais improvável de todos. Lucas, da casa de Demeter. Bom, assim que vocês se recuperarem, a missão vai ter início. Acho que vocês tem muito o que falar. Amor, vem aqui fora um minuto?

Ele e a dra. Cassandra deixaram o quarto, levando Karine e suas espadas de treino com eles. Jade e Nathália estavam sozinhas de novo, ambas se olhando, num silêncio muito desconfortável.  Poucos momentos que pareciam durar uma eternidade.

– Então Jade, você é a quarta heroína, certo? – perguntou Nathália depois de alguns segundos de hesitação. Apesar de ter acabado de tomar um pouco de água sua garganta estava seca.

– É, sou eu – disse ela abraçando desconfortavelmente a si mesma – isso quer dizer que vamos sair em missão logo, não é?

– Sim, é isso mesmo.

Silêncio de novo. Por um momento Nathália chegou a desejar que acontecesse algum ataque. Mas ao invés disso a porta foi aberta e alguns amigos entraram porta à dentro. Oliver, Eric, Dezan e Lucas entraram no quarto. Lá fora podia-se ouvir as reclamações da dra. Cassandra. Jade poderia jurar que em certo momento ouviu um urro que se parecia muito com o de um morto-vivo do filme “madrugada dos mortos” mas achou que estava apenas ouvindo coisas.

– Vocês estão bem! Que legal – disse Eric, vestindo uma bermuda caqui de bolsos bem largos e uma camiseta do santuário – vocês passaram quase uma semana aqui. Ficamos muito preocupados.

Quase uma semana inteira, pensou Jade. Então os ferimentos eram bem mais sérios do que ela pensava. Ou isso ou a Dra. Cassandra estava perdendo o toque.

A reunião informal começou sem muitos rodeios, como Nathália gostava. Os meninos foram direto ao ponto explicando que a situação no Olimpo deteriorou muito com a prisão de Zeus. Nos quatro cantos do mundo os deuses e seus seguidores e parentes estão sendo sistematicamente atacados. O inimigo não tardou em sua ofensiva. Mesmo o santuário tinha sido atacado duas vezes nos últimos dias. Por isso o professor Roberto, a Dra. Cassandra e outros semideuses veteranos tinham se juntado na defesa do lugar.

– Nenhuma baixa, felizmente – comentou Dezan sorrindo, tentando transmitir confiança.  – mas ainda não sabemos como eles atacam. Num momento a área esta vazia e no outro eles atacam.

– Pelo menos descobrimos parte de seus planos – disse Eric tentando chupar as últimas gotas de suco de ambrosia que restaram no copo de Jade.

– “Descobrimos”? – perguntou Oliver, com a sobrancelha erguida.

– Ok, a Bêpê descobriu. – Eric fez uma careta ao ser contrariado, mas continuou – A menina é um gênio no computador. Eles estavam atrás de nós cinco mesmos. Ao que parece eles já sabiam da profecia antes de nós. Mas não apenas nós. De alguma forma estavam atrás de nossos pais. Pelo menos os que não são deuses. É bem provável que sejam responsáveis pela morte ou desaparecimento de algum de nossos parentes.

Jade engasgou. A sua avó materna desapareceram no verão passado quando estava voltando do santuário carregando algumas roupas suas para serem costuradas. Será que ela foi mesmo levada por aquelas coisas?

– Ao que tudo indica esse inimigo novo está se aliando com forças antigas. Muitos arquivos citam gigantes, quimeras e outras coisas mais repulsivas – a imagem do katomeros surgiu na mente de Oliver – mas ainda não descobrimos nada de realmente útil. O que sabemos é que temos de partir em breve. Seja lá quem for este novo inimigo descobrimos que eles são suscetíveis a relâmpagos.

– Os filhos de Hefesto já estão trabalhando em azagaias que disparam relâmpagos, mas ainda estamos um pouco lentos na produção – disse Oliver – Estou trabalhando com eles. Bom, além disse temos mais coisas para dizer. Sr. Dezan?

– Ok, parece que os poderes de Jade como oráculo finalmente emergiram. Ela refez a profecia da Sra. Margareth com uma precisão assustadora.

– E para onde nós vamos? – Jade não segurou-se curiosidade, a cabeça girando com tantas informações.

– Fortaleza, capital do Ceará – disse Eric com um tom pensativo, que definitivamente não combinava com ele. – Onde o fogo é feroz.