Colocando a sua aventura nos trilhos
Railroad é uma expressão da língua inglesa que pode ser traduzida como “Estrada de Ferro”. Para quem não sabe (aliás, se você não sabe, de que universo você é?) estrada de ferro são os trilhos por onde correm e trafegam as locomotivas.
Uma das características da estrada de ferro é que ela costuma ser o “o melhor caminho” entre dois pontos dispostos geograficamente sobre a terra. Ela não tem congestionamentos, sofre pouco com a chuva e os trens podem desenvolver boa velocidade. A taxa de acidentes é pequena e uma vez instalada o custo de manutenção é baixo. Uma boa estrada de ferro pode operar virtualmente por décadas antes de exigir uma reforma mais elaborada. Países desenvolvidos usam e abusam de suas estradas de ferro, modernizando-as constantemente. O que dizer de maravilhas como trem bala japonês ou o túnel europeu sob as águas do oceano?
Em RPG o termo ganha um novo significado. Railroad aqui está ligado especialmente a aventuras “pré-determinadas” em que os jogadores navegam a partir de um ponto de partida até um ponto de chegada. É uma aventura mais centrada em torno de uma história ou conceito. Os jogadores devem navegar através da história, mas sem muitas chances de interferir com o seu curso.
Uma analogia que deixa isso bem fácil de se compreender é com os jogos de RPG eletrônicos. Pegue qualquer final fantasy, por exemplo, e você terá o melhor tipo de railroad que existe. As histórias são fantásticas, os personagens bem construídos, os combates são emocionantes, as reviravoltas são inesperadas… mas é só. Você não pode “mudar” a história. É como se você entrasse em um filme como Star Wars – Uma nova esperança. Você pode fazer o que quiser – ou pelo menos tentar fazer – mas no final a Estrela da Morte será destruída por Luke Skywalker com a ajuda de Han Solo. Isso não vai mudar.
Railroad é, portanto, uma espécie de trem em que os jogadores embarcam para levá-los através da história que o mestre do jogo quer contar. Existe uma linearidade na história. Posso estar errado em porcentagens, mas 90% de todas as aventuras prontas que já vi na vida são deste tipo. Elas levam os jogadores de evento para evento, mas o final, com pouquíssimas variações é sempre determinado.
Mas eu quero ir por ali…
Uma das grandes vantagens deste tipo de aventura é a sua previsibilidade. Mestres que gostam de planejar podem preparar “props” com muita antecedência, deixando cartas e pistas para serem recolhidas pelos personagens. Um chapéu, um velho relógio, um carta manuscrita em papel envelhecido com suco de limão… tudo isso pode ser preparado para deixar a aventura ainda mais emocionante.
Outra grande vantagem é que o railroad é perfeito para aventuras que tem que ter começo, meio e fim dentro de um curto espaço de tempo. Aventuras feitas para serem mestradas em eventos têm essa característica como ponto forte. Nada mais sem graça do que você passar metade do tempo da aventura montando o seu personagem para praticamente não jogar depois disso. O Nitro tem um artigo fantástico de como preparar sua aventura para o curto espaço de tempo de um evento e embora ele não utilize o termo railroad, ali estão presentes as melhores dicas para uma boa aventura do gênero.
Entretanto a grande vantagem do estilo é também apontada pelos seus críticos como a sua maior desvantagem. Uma aventura railroad é aquela que em as decisões dos jogadores têm pouco ou nenhum impacto nos eventos vindouros, ou mesmo que as decisões dos jogadores são, em certa medida, determinadas pelo mestre do Jogo. Uma das coisas que torna o RPG um jogo tão especial é que vocês, jogadores e mestre, decidem os rumos da história E podem alterar este rumo. Uma coisa é você jogar GTA sabendo que você nunca poderá fazer uma coisa simples, como, por exemplo, abrir um bar e se dedicar a ele. Mas qualquer personagem de RPG pode fazer isso.
O rairoad força o RPG a um determinismo. Os personagens têm que impedir o Coringa de mudar a face da estátua da liberdade com um novo raio especial . E não importa o que os personagens façam. No final o Coringa vai ser pego pelo Batman e entregue as autoridades. Essa foi a primeira aventura de supers do universo DC que eu joguei, só deus sabe quando. Se me recordo bem eu jogava com o Ciborgue, mas na mesa também tinha o Samurai, o Chefe Apache, o Vulcão Negro e o Arqueiro Verde.
A Culpa não é do Roteiro e sim de como ele foi executado.
Se você gosta de cinema deve ter percebido como existem filmes por aí que são ótimas idéias, mas que são porcamente executadas. Outro tipo de filme é que o roteiro pode até não ser dos melhores, mas a forma como ele foi executado o torna uma obra-prima. Aventuras Railroad sofrem o mesmo paradigma. Tudo depende de quem as executa.
Um exemplo de railroad ruim é quando o mestre empurra para os jogadores a aventura goela abaixo. Veja o que aconteceu comigo…
Mestre: Ok, depois de matarem o Dragão, vocês estão indo de volta para a acidade quando começa a chover. Vocês vêem uma mansão velha ao longo da estrada. Parece ser o lugar ideal para se abrigarem lá. Quando vocês se aproximam da porta…
Jogador 1: Opa, peraí… quem disse que a gente vai entrar na mansão velha e mal assombrada? Eu quero ir na cidade vender a pele de dragão que pegamos, antes que estrague. Um pouquinho de chuva não vai fazer mal.
Mestre: Mas vocês ouviram falar deste lugar. Dizem que um morto-vivo poderoso mora ali. Com certeza os moradores da cidade vão ficar gratos se vocês o destruírem…
Jogador 2: Gratidão por gratidão eu não preciso disso não. Quero ir para o norte, caçar mais dragões.
Mestre: Mas vocês não vão entrar? A chuva começa a ficar mais forte…
Jogador 3: Vamos apressar o passo para a cidade…
Mestre: Ok, vocês vêm uma manada de beholders vindo na direção de vocês.
Jogador 1: Tá bom, a gente entra na droga da mansão…
Eu era o jogador 4. Estava calado porque sabia o que ia acontecer. Era a aventura Hasken’s Manor, se não me engano. A aventura não foi ruim, mas ser empurrado dentro dela assim com tanta “sutileza” não foi divertido.
Se o mestre tivesse colocado a mansão em outro ponto da história – depois de vendermos as peles de dragão, por exemplo – pode até ser que estivéssemos mais dispostos a derrotar aquele bando fedorento de goblins antes que eles libertassem o mago lich que lá habitava. Mas o mestre naquele momento matou a aventura.
As pessoas não gostam de ser manipuladas e os seus jogadores também são pessoas. Eles podem ficar muito chateados se forem obrigados a seguir um determinado evento em particular. Recordo-me de uma aventura em que tínhamos de atravessar um penhasco subterrâneo. A única forma era uma ponte de corda que ia se romper, nos levando a outro ponto da masmorra. O mago tentou teleporte e a magia falhou. O druida mudou de forma para uma águia e tentou passar voando e foi derrubado por ventos (ventos! Ventos numa caverna a não sei quantos metros abaixo do chão). Ladino tentou escalar a parede e acabou morrendo. Resultado? Lá fomos nós…
Descarrilhando o seu trem
Railroad não é um tipo de jogo ruim. Boas aventuras são railroad e são aclamadas por isso. Matar o Dragão que assolava o Vale da Adaga, levar os Planos da Estrela da Norte para a Senadora Organa, impedir que o Dr. Moriarty roube as jóias da Coroa com um dirigível… todas são aventuras fantásticas. Mas não podem ser só uma forma diferente de ler o roteiro.
O bom mestre deve estar pronto para descarrilhar seu trem de vez em quando. Os jogadores começaram uma campanha para caçar o assassino do rei, mas no meio do caminho eles decidem ajudar a donzela elfa do reino de Iscandar a encontrar a cura para a sua terra moribunda. Vai que no caminho conhecem o Rei dos Dragões, Granamir e aceitam dele a missão de trazer uma coroa que foi roubada de seu tesouro quando ele ainda era apenas um jovem dragão vermelho. E quem sabe depois disso os jogadores simplesmente não têm poder o bastante para eles mesmos assumirem o reinado? Esteja pronto para isso e deixe acontecer.
Deixe o trem descarrilhar.
Railroad é ruim? Longe disso. Pode ser ruim? Com certeza.