A hora e a vez do livro dos Monstros!
Bestiário é um tipo de literatura descritiva do mundo animal, as bestas, muito comum nas classes monásticas do período medieval. Eram catálogos manuscritos realizados por monges católicos que reuniam informação sobre animais reais e fantásticos, tal como o aspecto, a aparência, o habitat em que viviam, o tipo de relação que tinham com a natureza e a sua dieta alimentar. A maioria dos bestiários foi escrita durante a baixa Idade Média, e eram acompanhados de mensagens de cunho moral.
Os bestiários eram livros alegóricos, por vezes claramente humorísticos e fantasiosos, em cuja informação não derivava de conhecimento científico ou experimental, ou de observação no terreno das criaturas que eram descritas.
Algumas das representações dos animais, como o abutre, não correspondiam à realidade da natureza. Em muitos livros clássicos como o “Bestiário de Alberden” eles se assemelham à águias. Em outros casos, as informações ali contidas serviam para fortalecer conceitos bíblicos, como é o caso do Unicórnio, que era tomado pela pureza da virgindade feminina. Uma mulher virgem era, portanto, a única forma de atraí-lo.
Para RPGistas de todos os sistemas o bestiário tem duas interpretações. Para mestres o bestiário significa “mais formas interessantes de matar os personagens dos jogadores” e para os jogadores, por sua vez, significa “novas formas de ganhar experiência”. Um item praticamente indispensável em jogos de fantasia medieval o bestiário trás consigo uma carga muito particular e interessante. Ele mostra não apenas os monstros, animais e criaturas fantásticas desde ou daquele cenário ou sistema. Ele também mostra como o povo do sistema se relaciona com ele.
Quase todo grande sistema de RPG que foi lançado no Brasil teve sua versão do livro dos monstros (menos GURPS que preferiu trazer itens sem sal como “o resgate dos retirantes” ou coisa assim). Aliás, qualquer mestre ou narrador que se preza já escreveu pelo menos 4d6 criaturas para atazanar a vida de seus jogadores.
Mas qual é o verdadeiro papel de um bestiário? Ele é realmente necessário? Como saber se não estou comprando gato por lebre?
Cuidado, a cá existem dragões.
Nos livros e mapas antigos, os monstros tinham um papel de apontar para o homem os perigos do desconhecido. Para um homem medieval, uma simples pantera negra era uma “fera atroz, devoradora de carne, e caçadora hostil, que se vestia com o manto da noite, camuflando-se na escuridão com sua negra pele”. O seu papel era alertar para que não se baixasse a guarda.
Bem, mas e nos mundos de fantasia? Nos mundos de fantasia os monstros são desculpas para qualquer outra cousa. Eles podem ser os vilões, ou seus asseclas; podem ser desafios a serem derrotados, tais como fossos ou montanhas; e podem, finalmente, ser apenas pano de fundo para o que quer que aconteça.
Quando se escreve um bestiário é difícil fugir do Cânone. O livro dos monstros de AD&D/D&D 3.X é o maior que eu conheço. Ali você encontra desde os míseros kobolds, passando pelos desafiadores gigantes até desafios épicos como Dragões e Tarrasques. Toda uma campanha pode girar em torno de um único monstro e suas variações. Foi o caso da minha saudosa campanha terra dos mortos (zumbis), ou Aeon (Dinossauros).
Você precisa mesmo desta criatura nova? (ou o truque de mudar a cor)
Se você já jogou videogame sabe de um dos truques mais comuns dos programadores: ao invés de desenhar um monstro totalmente novo eles pegam um monstro que já existe e mudam a sua cor, representando que ele é outro monstro. Assim, temos o leão da savana (cor de leão), o leão das neves (branco e tons de cinza claro), o leão do deserto (vermelho e cor de fogo), o leão gigante… e o pior é que muitos livros de criaturas se baseiam neste princípio para aumentar o número de criaturas ali dentro. Ou seja, o goblin genérico é um monstro, mas o goblin combatente é outro, enquanto que o goblin especialista é outro e assim vai. Valha-me nossa senhora das sub-raças dos elfos: um para cada terreno conhecido.
Uma coisa que os primeiros bestiários não precisavam pensar era no modelo de cadeia alimentar. Eu preciso de uma boa quantidade de alimentos disponível para alimentar uma enorme quantidade de herbívoros, que por sua vez vão ser perseguidos por uma quantidade bem menor de carnívoros predadores.
Pegue por exemplo a savana africana. É preciso que exista muito pasto e água para grandes quantidades de animais, como antílopes, por exemplo, para suportar um único clã de leões. Se existem mais leões do que antílopes, vai começar a haver um desequilíbrio natural. E este desequilíbrio pode resultar numa savana sem nenhum animal maior. E nem pense que antílopes servem apenas para justificar a presença de leões na área. Outros mamíferos herbívoros são tão ou mais perigosos que leões. Pense num elefante enfurecido ou um rinoceronte que acordou do lado errado do poço de lama e você vai ter problemas para lá de interessantes.
É uma coisa para se pensar se os monstros do livro fazem parte de algum tipo de cadeia alimentar entre caça/caçador, consumidor/produtor, ou se ele é apenas mais uma criatura com muitos pontos de vida e habilidades estranhas, feito especialmente para matar jogadores.
Pense por exemplo em algum animal do livro dos monstros. Algo pequeno, que não seja um desafio aos jogadores, mas pode ser um verdadeiro transtorno para o meio ambiente. Vamos lá: que tal ratos atrozes?
Com 5 pontos de vida, CA 15, Iniciativa +3, Mordida (Ataque +4) dano de 1d4 + doença) ele não parece muita coisa não é? Mas veja o tamanho do danado: um rato atroz pode crescer a até 1,20m de comprimento e pesar mais de 25 quilos. Agora imagine uma ninhada destes bichos rondando solta nos esgotos: não existe competição com os outros roedores e nenhum gato ou predador natural da cidade pode dar conta deles. É uma questão de tempo até que eles exaurirem todas as fontes de alimento dos lixões e dos esgotos para começarem a atacar nas zonas mais pobres da cidade. Um camponês típico tem uma média de 1d4 pontos de vida por nível, e seu bônus de ataque sucks! Quantos camponeses vão morrer vítimas destas criaturas, que foram colocadas apenas para dar um “temperinho extra” naquela aventura de nível 1? E olha que o bicho tem apenas ND 1/3!
Sei que pode ser que eu esteja exagerando, mas o equilíbrio natural é mesmo alguma coisa importante, a não ser que tudo o que você queira seja uma sucessão de combates sem sentido. Passeando pelas colinas os personagens já foram atacados por ursos atrozes, entes ferozes, elfos da floresta territoriais, serpentes constritoras, escorpiões gigantes e não encontraram ainda um maldito arbusto de cerejas para matar-lhes a fome.
Tipos e subtipos, mudanças de gêneros e coisas assim.
Uma das mudanças mais legais do AD&D para o 3.X é a questão do tipo de monstro. O tipo é uma espécie de pacote de características genéricas que todo monstro daquele tipo tem. Todo morto-vivo tem suas fraquezas e fortalezas que o caracterizam. Isso é bacana porque abriu a oportunidade para a criação de novos monstros, sem precisar de muito esforço e sem precisar comprar um novo livro.
Basta mudar o tipo da criatura. Anote aí uma receita para um monstro de desafio bacana, mas de ND baixo. Pegue um felino grande, aumente sua categoria de tamanho em 1 nível. Passe seu modelo para atroz. Agora adicione o modelo morto-vivo e presto! Você tem um leão atroz morto-vivo: chame-o de Grievous Lion e eis a sua nova criatura pronta para dilacerar os pontos de vida dos jogadores. Era assim que eu criava desafios para jogos como Resident Evil (d20 modern/Ação!!!) e para a minha campanha de D&D.
Entretanto alguns livros traziam monstros que eram literalmente sem pé e nem cabeça. Wemics, Otyugh, Owbear, Senmurv, Giffs e muitos outros são monstros que não deveriam ter saído da prancheta de projetos. Outros livros gastam espaço com monstros que não são monstros. Era o caso do bestiário do d20 modern que trazia entre seus desafios um gato doméstico!
Finalizando…
O bestiário é um livro valioso. Ele serve o mestre com informações importantes sobre as criaturas. Quanto mais fluffy for seu texto (mas sem ser prolixo), mais chances você vai ter de possuir em mãos uma boa ferramenta de trabalho.
Certa vez estávamos jogando uma aventura de AD&D em que um mago cobrava caro para que caravanas que atravessavam o deserto não fossem atacadas por Wyverns. Ele não os protegia de saqueadores ou coisas assim, mas apenas de Wyverns. O mago sabia que Wyverns tinham paixão por uma fruta local e quando alguém não pagava sua taxa de proteção ele ia a noite na caravana e borrifava a essência da fruta nas carroças. Todas as wyverns do deserto e mais algumas voaram no nosso encalço!
Se o seu cenário tem um bestiário próprio, você deve pensar seriamente em ver a roupagem que seus autores estão dando as criaturas. Pode ser uma grata surpresa como o livro de monstros do Reinos de Ferro – um dos melhores disponíveis no mercado ou o novíssimo Pathfinder Bestiary. Mas, atente se o livro é baseado em algum livro que você já tem, verifique se a compra vale mesmo à pena.
Pense a respeito do que eu disse: esses novos monstros são realmente tão necessários assim?