Gourmetização do RPG

O RPG como conhecemos existe a pelo menos seis décadas. O RPG surgiu nos EUA em 1971, com a criação do The Fantasy Game, rebatizado em 1974 de Dungeons & Dragons (D&D) – o bom e velho desenho das manhãs da Globo, “Caverna do Dragão”.

Seus criadores, Gary Gigax e Dave Anerson, eram ávidos jogadores de “jogos de guerra” (wargames, um passatempo bem comum nos EUA) que simulam batalhas usando miniaturas de veículos e exércitos. A ideia inicial que eles tiveram foi de jogar com personagens ao invés de tropas, e que cada jogador controlasse apenas um deles.

Hoje o RPG “de mesa” possui muitos adeptos em todo o mundo e graças a mídia está cada vez mais conhecida pelo grande público.

Esse grupo de pessoas forma uma comunidade, a comunidade RPG. Uma coisa sem forma e nem consciência de classe. Mas com muita opinião. Aqui, literalmente todo mundo tem algo a dizer. Desde os que fazem vídeos aos que escrevem blogs, dos que escrevem tweets aos que fazem transmissões no twitch… todo mundo, eu incluso, tem algo a dizer.

Justamente por sua idade venerável por esse grande descobrimento que as pessoas estão tendo com o jogo e pela capacidade maravilhosa de todo mundo falar o que quiser (e em muitos casos ouvir o que não quer) certos assuntos voltam à baila de tempos em tempos. São normalmente categorizadas como “polêmicas”: assuntos que mobilizam a opinião da comunidade RPG.

É possível qualquer combinação raça x classe? Anões magos e halflings bárbaros? Devemos usar o termo raça ou ancestralidade? Orcs são “naturalmente” maus? O que acontece se uma mulher grávida for transformada numa vampira? O que acontece quando um lobisomem é transformado num vampiro? E um lobisomem fêmea grávida de um mago for abraçada por um vampiro? Um zumbi de residente evil seria afetado por poderes de um clérigo de D&D? É possível jogar errado?  Os dados são jogados de que lado do escudo? Está OK para o narrador (DM/ Mestre do jogo/ seja lá o que for) mudar arbitrariamente o resultado dos dados?

Algumas dessas discussões nos levam diretamente a gourmetização do RPG.

O que é gourmetização?

Gourmetização é um termo da neolinguística, muito usado nos dias de hoje. Sua origem vem da cozinha sofisticada. E assim como muitas influências na gastronomia vêm da França, com a palavra “gourmet” não seria diferente. Essa palavra remete à ideia de: charme, delicadeza e sofisticação.

No mundo gastronômico, o “gourmet” se associa a pratos exclusivos e artísticos, geralmente caracterizando a alta gastronomia. O que eleva o prestígio do seu restaurante porque, além de tudo isso, essa palavra também transmite a ideia de alta qualidade.

Em termos mais claros, a gourmetização significa transformar uma comida simples (ou qualquer outra coisa) em algo sofisticado e com mais qualidade, único. RPG também.

E sempre que alguma coisa se gourmetiza (ou é gourmetizada) se torna uma coisa de elite. A palavra elite era usada inicialmente para nomear produtos de qualidade excepcional. Posteriormente, o seu emprego foi expandido para abarcar grupos sociais superiores, tais como unidades militares de primeira linha ou os elementos mais altos da nobreza. A palavra elite evoca hoje em dia uma visão política de uma classe dominante, superior, com mais recursos. A Elite, de modo geral, pode ser considerada como um grupo dominante na sociedade. Elite seria um sinônimo tanto para liderança quanto para formadores de opinião.

Outra forma de identificar uma elite é aproximando-a da categoria intelectual da classe dirigente. Neste caso, a ideia de formar opinião pública é substituída pela ideia de construção ideológica, entendida como a direção política em um dado momento histórico. Sob este aspecto, a elite cumpriria também o papel de dirigente cultural. A ideologia corrente de um determinado grupo seria mantida e coordenada, em tese, pela elite deste mesmo grupo.

E a tal da elitização do RPG?

Hoje em dia as polêmicas mais sérias giram em torno de duas velhas conhecidas, uma que acaba desaguando na outra: o narrador pode jogar dados atrás do escudo para influenciar o resultado dos dados e da história? E ela descamba automaticamente para a clássica: existe um jeito de jogar errepegê errado?

Na primeira questão levanta-se a falsa dicotomia entre a manipulação do narrador versus a organicidade dos dados, como se qualquer uma dessas coisas existisse realmente. Se o narrador pode escolher tacitamente se aquele acerto acertou mesmo ou se não acertou, qual a finalidade de jogar dados? Se o narrador pode mudar o rumo da história independente da ação dos personagens dos jogadores ainda é RPG? Os dados são uma expressão da caoticidade do mundo onde tudo pode mesmo acontecer. Mas devemos mesmo deixar essa caoticidade governar as vidas e as histórias que estão sendo tecidas conjuntamente na mesa? Afinal não são os dados que determinam a história, apesar de terem um peso muito grande nela.

E se o narrador faz isso mesmo, ele está interferindo na diversão dos outros jogadores? Está tudo ok em ser manipulado desse jeito? Não está? É uma interferência indevida na verdade determinada do personagem pelo seu jogador? É errado?

Em primeiro lugar, “certo” e “errado” são palavras dentro do escopo moral que semanticamente evocam sentimentos de coerção na nossa sociedade. Na prática, “estar certo” é bom e plausível, enquanto “estar errado” é ruim, culpável e rejeitável. Na prática, quando eu digo que o seu jeito de jogar RPG, jogando dados por trás do escudo é errado eu estou dizendo que você é socialmente reprovável enquanto eu sou socialmente aceito. Eu sou melhor, mais legal, mais bacana, peido mais cheiroso do que você.

E as fadinhas?

Tá… e eu preciso mesmo de toda essa falação para fingir que eu sou uma fadinha purpurinada que solta bolas de fogo pelos sovacos durante três ou quatro horas num sábado lodorrento?

A resposta é não. Mas tem três coisas que você deveria saber antes de se meter nessa seara…

A primeira é tome cuidado se você não se divertir. Se você está jogando RPG mas não está se divertindo, tem alguma coisa ali que não está ok. Ninguém se engaja num jogo social como esse para ter raiva, para se sentir mal ou para disparar gatilhos de ansiedade. Para isso também serve a sessão zero. Nesse caso eu comparo jogar RPG a receber amigos em casa: se eu amigo tem trauma de estupro e abuso, por que colocar isso no jogo? É a mesma coisa de ter um amigo que é alérgico a camarão… e servir um bobó de camarão para ele.

A segunda é que não existe uma polícia do RPG que vai invalidar o que você e seus colegas fazem na sua mesa de jogo. Na sua mesa de jogo vale o que o grupo decidir. Não tem d20 e quer jogar 3d6 no lugar? Nenhum problema. Quer usar cartas de baralho e apostas ao invés de jogar dados de dez lados em vampiro? Tudo em paz! Não é como se alguém fosse fiscalizar na sua mesa de jogo.

A terceira é que ninguém, ninguém mesmo tem o direito de dizer que o seu jogo está errado ou que a sua mesa é melhor ou pior do que a de qualquer um. Jogue como você quiser e deixe essas questões polêmicas para os grandes pensadores do RPG: afinal de contas tem gente que se diverte muito mais montando um ferrorama do que brincando com um.

No fim, vale mesmo o diálogo e o bom senso, sabendo que estamos discutindo sobre coisas que só existem – se é que existem mesmo – na nossa imaginação. Deixe claro sua proposta de jogo no dia zero e que as pessoas que a topem joguem com você. De resto é só se divertir.