Diário de um sobrevivente – Capítulo 2

Capítulo II: Batalhão.

O sargento mais velho, um gorducho de barba por fazer chamado Maciel, veio na frente comigo. Ele me deu todo o serviço de como as coisas chegaram aonde chegaram: ineficiência governamental para resumir. O governo preferiu discutir o impacto do novo plano econômico sobre o décimo sexto salário dos deputados do que liberar verba e soldados para a guerra contra os zumbis. Quando São Paulo caiu e o Rio seguiu o mesmo caminho já era tarde para agir. A primeira recomendação foi não sair de casa. Depois as recomendações foram para procurar autoridades e grandes centros. Seria mais fácil proteger todo mundo se todo mundo estivesse junto. Mas aí, como sempre, a merda fedeu forte. Os centros de proteção viraram centro de extermínio quando os zumbis invadiram o lugar. E quando não invadiam, as pessoas invariavelmente morriam de fome e sede. Foi o que aconteceu com o pessoal que se refugiou no Centro de Convenções JK, esperando um resgate por helicóptero que nunca veio.

O outro sargento, o Tavares tinha entrado para a polícia a pouco tempo. Passou num concurso público ou coisa assim. Não tinha muita experiência de campo e olhava para tudo com um olhar distante, como se estivesse com sono, cansado de esperar o despertador tocar para acordá-lo desse pesadelo vivo. A tenente, uma tal Maria Wolney, era negra de cabelos curtos. Ela trazia uma escopeta nas mãos e seus olhos felinos e selvagens diziam o tempo todo para mim que se um daqueles tipos tinha chances reais de chegar ao nordeste, este um era ela. O cabo era um coitado chamado Nogueira. Ele não estava armado e fedia a urina forte. Parecia que estava cagado e em estado de choque. A pele branca estava toda manchada de queimaduras de sol e nos óculos de arame fino faltava uma lente. Ele passava o tempo todo resmungando. Eu achei que ele tinha sido mordido, mas o Tavares se apressou em dizer que não. Ele era um rato de escritório que usava a desculpa de doença de pele para não trabalhar na rua. Sobreviveu porque é o único que tem acesso ao cofre-forte do batalhão.

Chegamos ao setor sul. Poucos zumbis nas ruas. Descemos pela rua do posto de saúde e paramos numa barricada de sacos de areia na pista do nono batalhão. Tenho de admitir que fizeram um trabalho rápido para encher aquele monte de sacos de areia dando a volta no perímetro. Tinha também muitos sacos de cimento ao relento servindo como base para apoiar os sacos de areia. Mais a frente havia dois ninhos de artilharia onde os canos de duas metralhadoras ponto 30 apontavam para parte alguma. Tavares pulou do carro e escalou o muro com rapidez. Ela olhou demoradamente por cima do muro. Um minuto depois o Maciel saiu do carro, pegou a escopeta e subiu na corroceria e ficou de aviso. Ele bateu no teto do carro e disse que se eu precisasse arrancar dali, arrancasse. Chagas desceu e entrou no carro. Ela disse que havia um portão aberto na lateral do batalhão por onde poderíamos entrar. Seguimos para lá, atropelando alguns zumbis no caminho.

Entramos. Não precisava ser detetive forense do CSI para saber o que rolou ali. Os zumbis vieram do Goiás e entraram pelo portão que não tinha sido fortificado com sacos de areia ainda, provavelmente num domingo quando todo mundo estava vendo um jogo de futebol no campo. Dava para ver muitos zumbis com camisas do timão se arrastando, um deles segurando a bola no meio do campo. Sabia que de alguma forma a paixão do brasileiro médio pelo futebol ia levar todo mundo à merda um dia. Seguimos até o prédio da garagem, onde também ficava o paiol.

Paramos a caminhonete do lado do paiol. Preparei meu rifle para dar cabo de um zumbi com blusa do alviverde que estava perigosamente perto quando a Maria me impediu. Não faz barulho, ela disse, imitando o gesto das enfermeiras, barulho atrai os zumbis. Se quer dar cabo dele vai e usa isso. Ela me passou um cassetete. Taí uma coisa que eu não sabia: barulho atrai zumbis.

Entramos no paiol, praticamente arrastando o peso morto do Nogueira que estava quase desabando em choro. Eu imaginava que assim que o caveirão estivesse em condições o Nogueira seria um peso morto deixado para trás. Ele começou a rotina de abertura do paiol. Quando abriram, viram a decepção: o lugar tinha sido praticamente limpo, fora algumas submetralhadoras HK, poucos pentes de munição, uma caixa de granadas, algumas pistolas e mais algumas coisas. Começaram a catalogar as coisas quando eu peguei uma escopeta, uma caixa de munições, um colete, um boné do Bope (sempre quis ter um daqueles) e fui me dirigindo para a saída.

Onde você vai? Perguntou o Tavares. Respondi que ia embora, que o trato era trazer os caras até ali e que não tinha interesse nenhum em me meter numa viagem para a terra prometida do nordeste. Ele sacou a pistola e apontou para mim dizendo que como não tinha caveirão eles estavam confiscando a minha picape para uso policial e se eu quisesse poderia ir com eles. Policiais de merda. Estava sem condições de dizer nada quando ouvi alguns tiros vindos lá de fora. Pois é, ninguém tinha vigiado o Nogueira, que depois de abrir o paiol perdeu o último parafuso. Ele saiu e estava disparando contra os zumbis. Grande erro. O trinta e oito que ele tinha descolado, sabe Deus onde, fazia mais barulho que carro de som de supermercado. Merda, gritei. Nem deu tempo de agir, a Maria passou por mim feio um raio e nocauteou o Nogueira por trás.

Mas o estrago já estava feito. Pelo menos três dúzias de sacos de dentes estavam vindo em passo acelerado em nossa direção. Não apenas isso. Outros zumbis que estavam dormindo nos prédios próximos resolveram sair da toca: em menos de um minuto tinha mais de duzentos zumbis em nossa volta.

Corri pro carro e dei a partida. Gritei para eles que ia distrair os zumbis e que eles pegassem o maior número possível de armas e estivessem prontos para uma extração rápida. Porra, “extração rápida”. Me senti num filme de guerra do Chuck Norris. Comecei a atropelar tudo que se mexia na minha frente. Dei umas duas voltas quando percebi que quanto mais eu matava mais dessas coisas chegavam. Passei de volta ao paiol e o Maciel subiu na carroceria. A Maria e o Tavares ficaram jogando coisas para ele e pouco mais de um segundo depois estavam à bordo. Só que o Tavares vacilou e um zumbi montou nas suas costas. Ele se batia feito um louco e os zumbis estavam se aproximando. Ele não ia se livrar a tempo. Peguei o rifle e mirei. A F-22 se convulsionou num estampido e os miolos do Tavares se espalharam na parede. Merda, gritei, dando ré. Mas por dentro eu pensei, menos um para me azucrinar as idéias.

Tocamos em direção ao meu sítio. Pelo retrovisor eu vi uma suruba de zumbis em cima do Nogueira, devorando e rasgando tudo. Não pude deixar de pensar que o veado do Nogueira teve o que mereceu.